Embora Descartes seja considerado o responsável pela postulação do problema mente‑corpo nos moldes contemporâneos, o estabelecimento da filosofia da mente como área central da filosofia foi um feito de Ryle. O argumento central do autor (1949) é que Descartes alocou os fatos a respeito da mente em uma categoria lógica errada, criando, assim, um mito – o mito da doutrina oficial ou, mais perniciosamente, o mito do fantasma na máquina.
Para Ryle (1949, p.16), a doutrina oficial “representa os fatos da vida mental como se fossem pertencentes a uma categoria ou tipo lógico (ou conjunto de tipos ou categorias), quando na verdade eles pertencem a outro”. Possivelmente, o erro cartesiano, conhecido como erro categorial, surgiu quando termos mentais no gerúndio passaram a ser usados como substantivos, o que facilitou a “criação” de uma entidade mental que, assim, passou a ser tratada como uma substância diferente da física.
Dizemos, por exemplo, que um sujeito está “pensando” em alguma coisa ou que está “sentindo” alguma coisa. Não há nada de errado em descrever ações por meio desses termos – o problema surge quando falamos do “pensamento” ou da “sensação” como se esses termos indicassem, em vez de uma ação, uma coisa ou substância. O erro estaria, portanto, em classificar a mente, tal como o corpo, na categoria de “substância”.
O seguinte exemplo de erro categorial é bastante esclarecedor: um estudante visita a universidade U; conhece todos os prédios, estabelecimentos, laboratórios, salas de aula, professores, alunos e assim por diante. Então esse estudante pergunta: onde está a universidade U? Seria preciso, perante essa pergunta, explicar ao estudante que a universidade não é uma coisa à parte das que ele visitou, isto é, que “universidade” é apenas o nome dado à forma como está organizado tudo o que ele visitou antes.
A universidade não faz parte da mesma categoria que outras instituições, como o Masp ou o Maracanã. A universidade não seria algo além do que ele viu. O estudante errou ao incluir a universidade numa categoria lógica à qual não pertence, e teve, assim, a ilusão de que sua pergunta era coerente. Outro exemplo: uma pessoa assistindo a um jogo de futebol reclama que não vê o espírito de equipe em campo.
Diz que vê todos os jogadores, a comissão técnica e os reservas, mas afirma que nenhuma dessas pessoas está encarregada do espírito de equipe. É preciso explicar a essa pessoa, portanto, que “espírito de equipe” não é uma característica do futebol – como as regras, as posições e as funções dos jogadores –, mas é o nome que se dá quando um time joga com entusiasmo e harmonia, dentre outras características.
Quando dois termos pertencem à mesma categoria é comum apresentá‑los em proposições conjuntivas que englobam ambos (Ryle, 1949). Nesse sentido, no âmago do erro categorial, existem a mente e o corpo, existem processos mentais e processos físicos, existem causas mentais e causas físicas. Entretanto, por não poderem ser descritos pela linguagem da física, química ou fisiologia, os processos mentais necessitariam de uma linguagem correlata, mas ao mesmo tempo particular.
Consequentemente, as evidências cartesianas que sustentam a diferenciação entre o mental e o físico são construídas por meio da linguagem da categoria lógica de substância: os processos mentais não são mecânicos, portanto devem constituir algo não sujeito às leis da física; as leis da mecânica dizem respeito aos objetos que ocupam lugar no espaço, portanto outras leis devem existir quando se trata dos eventos mentais; o comportamento inteligente seria causado pela mente enquanto os não inteligentes seriam apenas movimentos corporais; e assim por diante.
Esse ponto é importante porque uma das teses de Ryle (1949) é a de que uma análise lógico‑linguística do vocabulário cartesiano seria o bastante para invalidar a doutrina oficial. Justamente por utilizar a linguagem substancial para tratar da mente, que, por sua vez, de acordo com Ryle (1949), não é uma substância, Descartes estaria errado desde o princípio. Em tempo, embora crítico ferrenho do dualismo cartesiano, é importante ressaltar que Ryle (1949, p.23) não nega a existência da mente:
“É perfeitamente próprio dizer, em um tom de voz lógico, que mentes existem e dizer, em outro tom de voz lógico, que corpos existem. Mas essas expressões não indicam duas espécies diferentes de existência”. Em outras palavras, o autor apenas contesta que seja a mesma coisa dizer que “existem processos mentais” e que “existem processos físicos”, pois a mente e o corpo fazem parte de categorias distintas.
É perfeitamente possível dizer que existem mentes e que existem corpos, mas essas expressões não indicam dois tipos diferentes de existência substancial. Ryle (1949), portanto, suposta‑ mente destrói o mito cartesiano por meio da crítica do erro categorial. Surge, então, a questão: se não é uma substância, o que é a mente? Essa é uma questão bastante traiçoeira quando dirigida à obra de Ryle, já que o autor (1949, p.7) não estava interessado em desenvolver uma teoria positiva da mente:
“Os argumentos filosóficos que constituem este livro são projetados não para aumentar o nosso conhecimento sobre a mente, mas para corrigir a geografia lógica do conhecimento que já possuímos”. Esse posicionamento de Ryle pode sugerir uma leitura não ontológica da sua obra, segundo a qual ela seria apenas uma análise lógico‑linguística do vocabulário cartesiano, em vez de uma afirmação ontológica a respeito da natureza da mente (Park, 1994).
Por outro lado, a suposta abstenção de Ryle acerca do problema fez com que sua obra fosse interpretada como partidária do behaviorismo filosófico. E não faltam indícios na própria obra do autor que apontam para essa interpretação: “ao descrever o funcionamento da mente de uma pessoa […] nós estamos descrevendo a maneira pela qual parte de sua conduta é levada a cabo” (Ryle, 1949, p.50); e “minha ‘mente’ […] denota minha habilidade e inclinação para fazer certos tipos de coisas e não algum pedaço de aparato pessoal sem o qual eu não poderia ou de‑ veria fazê‑las” (Ryle, 1949, p.168).
A despeito das intenções de Ryle (1949), sua obra acabou por ser caracterizada como behaviorista filosófica (e.g., Armstrong, 1968; Ayer, 1970; Churchland, 1988/2004; Kim, 1996; Place, 1999; Weitz, 1951), e isso se deve, em grande medida, à linguagem disposicional que fundamentou a sua análise da mente. Nas palavras do autor (1949, p.43): “Possuir uma propriedade disposicional não é estar em um estado particular, ou sofrer uma mudança particular; é estar inclinado ou sujeito a estar em um estado particular, ou a sofrer uma mudança particular, quando uma condição particular for realizada”.
Dizemos, por exemplo, que um espelho tem a disposição para se quebrar se certas condições forem realizadas: ele pode ser atingido por uma pedra ou cair no chão. Entretanto, ser quebradiço não é uma propriedade ou um estado intrínseco ao espelho – não é algo que está nele –, mas é apenas uma propriedade que indica algo que pode acontecer com ele se certas condições forem satisfeitas. Afirmamos que espelhos são objetos quebradiços porque eles tendem a se quebrar quando atingidos por pedras ou quando caem no chão.
Dessa forma, após esclarecer o erro categorial, o passo seguinte de Ryle (1949) foi apresentar uma releitura dos termos e sentenças referentes à mente numa linguagem disposicional capaz de dar conta do fenômeno, mas sem sucumbir aos problemas da doutrina oficial. De acordo com Ryle (1949), os termos mentais correspondem às habilidades e inclinações para fazer certos tipos de coisas, isto é, denotam disposições para se comportar de uma dada forma. Afirmar, por exemplo, que “o sujeito S é inteligente” significa dizer que há nele uma disposição para se comportar inteligente‑ mente.
Esse tipo de afirmação é classificado como uma sentença disposicional. Em adição, há, também, sentenças do tipo lógico semidisposicional ou híbrido‑categórico. Quando afirmo que “o sujeito S está resolvendo o problema Y” não estou me referindo apenas a um episódio acabado, mas tampouco me refiro apenas a uma disposição do sujeito S. Nesse caso, há tanto uma narrativa da ação inacabada do sujeito, quanto uma disposição a ser confirmada. A narrativa da ação acabada, que consistiria numa sentença categórica, seria “o sujeito S resolveu o problema Y”.
A disposição seria, por sua vez, “o sujeito S tem disposição para resolver problemas do tipo Y” ou, se definirmos inteligência como a capacidade para resolver problemas, “o sujeito S tem disposição para agir inteligentemente”. Baseando‑se na linguagem disposicional, Ryle (1949) apresentou uma análise das principais características da mente, como o conhecimento, a intenção, a consciência, a percepção e a sensação.
Enquanto avaliar a obra de Ryle (1949) como behaviorista filosófica é uma mera possibilidade – de maneira alguma consensual –, por outro lado, alguns autores positivistas lógicos defenderam abertamente o behaviorismo filosófico, caracterizando‑o especial‑ mente pelo seu desdobramento denominado behaviorismo lógico (e.g., Carnap, 1932/1959; Hempel, 1935/2000, 1950/1959).
O ponto de vista desses autores é sustentado por dois pilares principais: (1) a possibilidade de tradução conceitual da linguagem da psicologia à linguagem fisicalista; e (2) a teoria verificacionista do significado. Sobre o segundo ponto, Hempel (1935/2000, p.170‑1) apresenta uma clara explicação:
O significado de uma proposição é estabelecido pelas suas condições de verificação. Em particular, duas proposições formuladas diferentemente possuem o mesmo significado ou o mesmo conteúdo efetivo quando, e somente quando, elas forem ambas verdadeiras ou falsas nas mesmas condições. Além disso, uma proposição para a qual não seja possível indicar condições pelas quais podemos verificá‑la, e que é em princípio incapaz de confrontação com condições de teste, é totalmente desprovida de conteúdo e não possui significado.
Há duas informações relevantes nessa citação. A primeira é que proposições formuladas diferentemente podem possuir o mesmo significado, ou seja, podem se referir às mesmas condições de satis‑ fação. Tomemos, como exemplo, a afirmação “Hoje a temperatura ambiente é de 25 ºC”. Como podemos verificar sua validade?
Uma maneira possível é averiguar a marcação no termômetro de mercúrio e constatar se, de fato, a temperatura ambiente é de 25 ºC, mas também podemos verificar por meio de outros testes físicos (outros tipos de termômetros ou equipamentos meteorológicos) e, nesse contexto, é possível apresentar as seguintes proposições: “O termômetro de mercúrio está marcando 25 ºC” ou “O nível do mercúrio está alinhado à marcação de 25º na escala que o acompanha paralelamente”.
Nessas proposições não foi utilizado o termo “temperatura”, mas elas indicam as condições de verificação da proposição que utiliza o termo, o que significa que todas elas possuem o mesmo significado. A segunda informação relevante contida na citação de Hempel, por sua vez, é que quando não há condições de verificação não é possível validar as afirmações e esse fato resulta na negação de seus significados ou conteúdos.
Nesse caso, as afirmações podem até ser gramaticalmente coerentes, mas são vazias porque não passam de pseudoproposições. A afirmação “Hoje a temperatura ambiente será controlada por Apolo, deus do Sol”, por exemplo, não teria sentido, já que não há condições pelas quais possamos verificar a sua validade. A partir da teoria verificacionista do significado, o behaviorismo lógico pretendeu traduzir todos os conceitos da psicologia em conceitos fisicalistas.
Nas palavras de Hempel (1935/2000, p.173): “Todas as afirmações psicológicas que são significativas – isto é, que são em princípio verificáveis – são traduzíveis para pro‑ posições que não envolvem conceitos psicológicos, mas apenas conceitos da física”. Analisemos, por exemplo, a afirmação “O su‑ jeito S está com dor de dente”. Como podemos verificar a validade dessa afirmação? Hempel (1935/2000) apresenta cinco condições possíveis:
- o sujeito S está chorando, emitindo grunhidos e fazendo gestos, como colocar a mão na boca;
- quando questionado, o sujeito S afirma estar com “dor de dente”;
- um exame meticuloso feito por um dentista revela que S está com um dente inflamado;
- há modificações fisiológicas no corpo de S, como aumento da pressão sanguínea e da temperatura, que podem estar correlacionadas à inflamação do seu dente; e
- ocorrem certos processos no sistema nervoso central que podem, de alguma forma, estar relacionados com o estado de S.
A partir dessas condições, Hempel (1935/2000) pretende traduzir a sentença psicológica que contém o termo “dor” para sentenças que dizem respeito apenas a estados ou processos físicos: a “dor” a nada mais equivaleria a não ser às condições físicas que satisfazem a sua verificação.
E mais, o conceito de “dor”, quando não faz parte de uma sentença psicológica de tempo presente que indica o estado atual de um sujeito, é apenas um conceito disposicional: assim como “inteligência”, o termo “dor”, em seu sentido disposicional, apenas indica uma inclinação ou tendência para se comportar de uma dada maneira e a propensão de que certas mudanças fisiológicas ocorram sob certas condições (Armstrong, 1968).
O projeto do behaviorismo lógico, no que diz respeito à psicologia, consistiria em traduzir todos os conceitos psicológicos para conceitos da física e, se pressupormos que essa empresa seja viável, não haveria problema mente‑corpo. O problema da relação entre mente e corpo, tal como posto pelo dualismo cartesiano, não faria sentido.
Afinal, todos os conceitos mentais, em princípio, seriam traduzíveis para conceitos físicos e, mesmo se defendêssemos a impossibilidade de tradução dos conceitos mentais, isso não invalidaria o programa behaviorista lógico, pois apenas indicaria que esses conceitos não possuiriam significado, ou seja, que seriam conceitos vazios.
Sendo assim, o que não fosse possível traduzir seria preciso descartar perante o argumento da ausência de significado. Nesse contexto, é pertinente apresentar quais seriam as estratégias de verificação dos termos mentais, isto é, em que lugar as suas condições de verificação estariam, e é Carnap (1932/1959, p.165) quem nos dá a resposta: “todas as sentenças da psicologia descrevem ocorrências físicas, a saber, o comportamento físico dos humanos ou de outros animais”.
A observação objetiva é essencial para o verificacionismo do positivismo lógico (Hempel, 1935/2000, 1950/1959). Assim, dizer que um termo da psicologia é traduzível para um termo físico significa dizer que um termo da psicologia encontra suas condições de verificação nos comportamentos físicos e observáveis dos sujeitos.
Kim (1996, p.28) apresenta uma definição de comportamento para o behaviorismo lógico que é compatível com essa constatação: “qualquer coisa que as pessoas ou os organismos, ou até mesmo os sistemas mecânicos, fazem e que são observáveis publicamente”; e Armstrong (1968, p.68) afirma que o objetivo do behaviorismo lógico era traduzir a mente em “termos de comportamento observável”.
Por fim, é possível encontrar uma definição bastante clara e concisa sobre o behaviorismo filosófico no texto de Churchland (1988/2004, p.49):
De fato, o behaviorismo filosófico não é tanto uma teoria sobre o que são os estados mentais (em sua natureza interior) e sim, mais propriamente, uma teoria sobre como analisar ou compreender o vocabulário que usamos para falar sobre eles. Especificamente, ele afirma que falar sobre emoções, sensações, crenças e desejos não é falar sobre episódios espirituais interiores, mas um modo abreviado de falar sobre padrões de comportamento, potenciais ou reais.
A primeira parte da definição ressalta o fato de que o behaviorismo filosófico apresenta essencialmente uma análise lógico‑ ‑linguística dos conceitos mentais. É possível encontrar essa estratégia tanto na obra de Ryle (1949), em sua linguagem disposicional, quanto na de Hempel (1935/2000), em sua estratégia verificacionista.
A segunda parte da definição, por sua vez, destaca o ponto central do behaviorismo filosófico: os conceitos mentais, se possuírem qualquer significado, serão passíveis de tradução para conceitos físicos, o que nesse contexto significa que eles seriam equivalentes a termos comportamentais publicamente observáveis ou a termos disposicionais que indicam a tendência ou propensão de que certos comportamentos publicamente observáveis possam ocorrer se certas condições forem satisfeitas.
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
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