Psicologia: Metafísica presente

Psicologia: Metafísica presenteBaseando‑se no que foi até agora escrito, é possível apresentar uma síntese sobre o papel da substância no behaviorismo radical. A substância não é importante pelos seguintes motivos: (1) metafísica ausente: o behaviorismo radical não precisa prestar contas às discussões metafísicas, pois, qualquer que seja o resultado, ele não falseará o fato de que é possível controlar e prever efetivamente o comportamento com o auxílio do conhecimento produzido pela ciência behaviorista radical; (2) propósitos da ciência: se o objetivo da ciência é prever e controlar o seu objeto de estudo, não é preciso ir além do nível de análise comportamental (relacional) para cumpri‑lo; e (3) relacionismo: o comportamento é relação e, enquanto tal, não pode ser definido como substância.

Por outro lado, a substância é importante pelos seguintes motivos: (1) conceitos genéricos: o vocabulário substancial aloca os conceitos genéricos da ciência do comportamento na realidade observável; (2) relações comportamentais: não há relações comporta‑ mentais, sejam elas respondentes ou operantes, sem substância. A única diferença está na função das propriedades físicas dos estímulos e das respostas: no respondente, elas determinam as características da relação; no operante, elas são selecionadas pela relação; (3) vocabulário unificado: o vocabulário das ciências naturais é invariavelmente substancial, então, o behaviorismo radical deve descrever seu objeto de estudo a partir desse mesmo vocabulário se almeja fazer parte das ciências naturais; (4) contraposição ao behaviorismo metodológico: a negação da dualidade físico‑mental e a defesa da dualidade público‑privado são fundadas nas teses de que há apenas uma substância – a física – e de que a diferença entre público e privado é relacional.

Dispensar os eventos privados do es‑ tudo científico, tal como os behavioristas metodológicos fazem, pode acarretar o fortalecimento da dualidade físico‑mental, inaceitável pelo behaviorismo radical; (5) estabelecimento do behaviorismo radical como ciência natural: o objeto de estudo do behaviorismo radical deve fazer parte do mundo natural, que é o mundo físico, o único mundo que existe; (6) auxílio metodológico: a fisiologia preencherá as lacunas deixadas pela explicação behaviorista radical; (7) existência do comportamento: não há comportamento sem genes, cérebro, músculos, nervos, e assim por diante.

Portanto, não existe comportamento sem substância. Tendo em vista essas informações, o delineamento de uma res‑ posta à questão cartesiana torna‑se, enfim, exequível: que propriedades são essenciais à existência do comportamento? Isto é, quais são as propriedades que, se ausentes, resultariam em sua inexistência? Mas, antes de partir para a apresentação da hipótese a ser defendida neste capítulo, é necessário estabelecer algumas definições pertinentes ao seu entendimento.

Primeiramente, é preciso entender exatamente qual o sentido do termo “metafísica”. Embora não seja tarefa fácil apresentar uma definição consensual sobre o termo, normalmente caracteriza‑se como metafísica a parte da filosofia que busca compreender a realidade última e transcendente (Hamlyn, 1995; Inwagen, 2007). Nesse sentido, discussões ontológicas são discussões metafísicas. Lowe (1995, p.634), por exemplo, sustenta que a ontologia é o ramo da metafísica endereçado especialmente para lidar com questões “tais como a da natureza da existência e a da estrutura categórica da realidade”.

Como definir a metafísica na linguagem behaviorista radical? Weiss (1924, p.36) apresenta uma definição bastante interessante a partir de parâmetros behavioristas: “Para o behaviorista, metafísica é meramente uma forma de comporta‑ mento que é familiarmente conhecida como ‘suposição’”. Pois bem: a metafísica que se quer delinear neste capítulo para o behaviorismo radical não tem pretensões de ser uma teoria sobre a realidade última e transcendente. Por outro lado, a definição de ontologia proposta por Lowe (1995) encaixa-se perfeitamente no propósito de desvendar a natureza do comportamento.

Sendo assim, quando for apresentada a seguir uma possível interpretação da metafísica “behaviorista radical”, a referência serão os aspectos ontológicos do comportamento e não propriamente a realidade transcendente. Deve‑se sempre ter em vista, também, que Weiss (1924) foi certeiro em sua definição: esse exercício metafísico não passa de uma suposição – uma suposição sobre a posição metafísica do behaviorismo radical acerca da ontologia do comportamento, e nada mais. Lowe (1995) também ressalta um ponto interessante da ontologia: a busca das categorias estruturantes da realidade.

No contexto deste capítulo, porém, seria mais preciso dizer que o objetivo é localizar as categorias estruturantes do comportamento. Até o momento discorreu‑se livremente sobre a “substância”, a “relação”, o “discurso substancial” ou “vocabulário substancial”, o “discurso relacional” ou “vocabulário relacional”, as “definições substanciais” ou “definições relacionais”, e assim por diante. Portanto, é preciso esclarecer o que se quer dizer com esses termos relativos à substância e à relação.

Com esse intuito, será proposta uma divisão entre conceitos e categorias. De acordo com o que vimos na seção dedicada ao comporta‑ mento verbal (seção 2.4) e na seção dedicada ao pensamento (seção 3.1), os significados dos “conceitos” estão nas contingências verbais que controlam a emissão de respostas verbais “conceituais”. Sendo assim, os conceitos substanciais são controlados pelas propriedades físicas dos objetos ou eventos aos quais os falantes se referem. Quando o analista do comportamento diz “luz acesa”, “o rato pressionou a barra” e “pelota de comida”, ele está utilizando o vocabulário substancial.

Por outro lado, os conceitos relacionais são controlados pelas relações observadas entre eventos. O mesmo analista do comportamento diz que a “luz acesa é o estímulo discriminativo”, o “pressionar a barra é a resposta” e a “pelota de comida é a consequência”. Nesse caso, em suas respostas verbais há tanto a utilização do vocabulário relacional quanto a do vocabulário substancial (como vimos anteriormente, é necessário que seja dessa maneira). O ponto central é que os conceitos relacionais não se confundem com os conceitos substanciais, embora estejam conciliados harmonicamente no discurso do cientista do comportamento.

Por detrás da distinção entre conceitos substanciais e conceitos relacionais há uma divisão categorial. De acordo com Ribes‑Iñesta (2003, p.150), as categorias podem ser definidas “como os critérios que descrevem os usos e desusos de palavras e expressões em relação a certos contextos de aplicação”. O estabelecimento da distinção entre conceitos substanciais e conceitos relacionais segue alguns critérios: esses critérios, por sua vez, dão forma às categorias de substância e de relação.

Dentro da categoria substancial residem os conceitos que se referem às propriedades físicas dos objetos ou eventos: o vocabulário da anatomia, por exemplo, faz parte da categorial substancial. Já na categoria relacional, por sua vez, residem os conceitos que se referem às relações entre eventos: o vocabulário da ciência do comportamento, por exemplo, faz parte da categoria relacional. Um ponto importante é que há sempre o risco de cometer erros categoriais. De acordo com Ryle (1949), o erro categorial ocorre quando alocamos um conceito de uma categoria como pertencente à outra categoria (subseção 1.1.2).

Por exemplo, esta‑ remos cometendo um erro categorial se definirmos um evento como “estímulo” por conta de suas propriedades físicas, pois o conceito pertence à categoria relacional. Afinal, o estímulo só é definido dentro de uma relação que também envolve respostas e consequências (seções 2.1 e 2.3). É possível supor que, no universo de discurso do behaviorismo radical, as duas categorias – substancial e relacional – são imprescindíveis. Não é possível excluir a categoria substancial, nem os conceitos que dela fazem parte, do behaviorismo radical porque a substância é por demais importante.

No final das contas, embora Skinner apresente o behaviorismo radical essencialmente como a filosofia da ciência das relações, isto é, do comportamento, essa ciência não é possível sem substância. Esse fato remete a uma interpretação menos radical das negativas de Skinner acerca da importância da substância. Quando afirma que o termo “matéria” perdeu sua importância porque há no mundo comportamento, Skinner parece estar apenas dizendo que não podemos ignorar a categoria relacional – é impossível estudar o comportamento apenas pela óptica substancialista.

Quando, por sua vez, Skinner defende que de‑ vemos nos manter no nível de análise comportamental, a justificativa parece ser apenas a de que essa atividade já é suficiente para prever e controlar o comportamento. O argumento da “metafísica ausente”, segundo a qual seria possível fazer ciência do comportamento sem comprometimentos metafísicos, é outro indício das prescrições práticas que controlam o comportamento dos cientistas do comportamento: produzir conhecimento científico a fim de promover condições para a ação efetiva.

Nota‑se que todas essas negativas são fundamentadas pelo caráter prático que norteia o behaviorismo radical em sua filosofia da ciência e em suas práticas científicas e, até mesmo, interpretativas (seção 2.2). Sendo assim, as negativas não impedem a postulação de uma metafísica positiva do behaviorismo radical, mas apenas deixam claro que, a despeito do resultado, este não influirá na autonomia da ciência do comportamento no que diz respeito às suas estratégias de previsão e controle do seu objeto de estudo.

Entretanto, é nesse ponto que a presente análise entra em terreno arenoso, pois todos os indícios sobre a importância da substância sugerem que há, de fato, comprometimento metafísico no behaviorismo radical; comprometimento que abarca a defesa da existência do mundo real como sendo o mundo físico ou o mundo natural. É necessário res‑ saltar, porém, que a defesa dessa metafísica positiva do behaviorismo radical, mesmo que não seja uma posição explícita de Skinner, não trará consequências negativas à ciência do comportamento.

Dito isso, o ponto de partida da metafísica positiva do behaviorismo radical pode ser expresso com a seguinte passagem de Skinner (1967, p.325): “O behaviorismo começa com a hipótese de que o mundo é feito de apenas um tipo de substância – lidada com muito sucesso pela física. […] Os organismos fazem parte desse mundo, e os seus processos são, por esse motivo, processos físicos”. Nesse sentido, o behaviorismo radical é monista fisicalista. Há apenas um tipo de substância no mundo: a substância física. Esse comprometimento metafísico está de acordo com a importância dada por Skinner à categoria substancial.

O monismo fisicalista, naturalmente, é o antípoda do dualismo cartesiano e é possível encontrar passagens em que Skinner nega veementemente a existência de uma mente imaterial: “Nenhum tipo especial de substância mental é pressuposta [no behaviorismo radical]” (Skinner, 1974, p.220); “Eu prefiro a posição do behaviorismo radical em que a existência de entidades subjetivas é negada” (Skinner, 1979, p.117), e, em tom mais ameno, “Embora eu não negue a ‘existência de eventos mentais’, não acredito que eles existam” (Skinner, 1988, p.212). Enfim, concluindo com Skinner (1974, p.233, itálico adicionado):

Uma análise do comportamento não apenas não rejeita qualquer um desses “processos mentais superiores”; ela [também] tem conquistado a dianteira na investigação das contingências sob as quais eles ocorrem. O que ela rejeita é a suposição de que atividades comparáveis ocorrem no misterioso mundo da mente.

Tem‑se, assim, o primeiro ponto esclarecido: com relação à natureza substancial do mundo, o behaviorismo radical é monista fisicalista. Seria desastroso, no entanto, parar por aqui na delineação da metafísica behaviorista radical, pois no mundo constituído por substância física há organismos que se comportam. Continuando com Skinner (1979, p.117): “O argumento behaviorista não é o do materialista ingênuo que afirma que o ‘pensamento é uma propriedade da matéria em movimento’, nem é dele [do behaviorista] a reivindicação da identidade do pensamento ou dos estados conscientes com os estados [cerebrais] materiais”.

O que essa passagem sugere? Uma interpretação possível é que há comportamento no mundo físico; e que o comportamento é, enquanto relação, irredutível à categoria de substância. Seria um erro categorial alocar o comportamento na categoria substancialista. Se restringirmos a metafísica behaviorista radical apenas à sua contraparte substancial também privamos o comportamento de sua essência relacional, o que significa, sem exageros, que eliminamos o comportamento tal como definido pelo behaviorismo radical: como um processo relacional de fluxo contínuo cuja existência é base fundamental e pressuposta para toda a construção da teoria do comportamento (seção 2.1).

A consequência última de se ater apenas à categoria substancialista seria, então, a própria negação do behaviorismo radical. Dessa forma, a metafísica behaviorista radical é, em um só tempo, substancial e relacional. Essas são as categorias estruturantes da ontologia do comportamento: há um mundo físico e há nesse mundo comportamento. Por que manter duas categorias – substancial e relacional – em vez de apenas a relacional? Afinal, se comportamento é relação, por que precisaríamos nos preocupar com a contraparte substancial? As razões estão na importância dada à substância pelo behaviorismo radical (seção 5.2).

A hipótese defendida neste capítulo, portanto, é que a substância e a relação devem ser imanentes na metafísica behaviorista radical. Essas categorias não devem ser vistas como disjuntivas, pois não há incompatibilidade, ameaças ou concorrência entre elas; pelo contrário, há complementaridade. Enfim, o objetivo deste capítulo era desvendar a natureza do comportamento, ou seja, as características essenciais à sua existência.

A metafísica behaviorista radical nos dá a resposta: o comportamento é relação, mas é relação que ocorre no mundo físico substancial. Não há comportamento sem relação, pois comportamento é relação, mas, por outro lado, não há relação sem substância. A essa tese metafísica acerca da ontologia do comportamento pode‑se dar o nome de relacionismo substancial.

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REFERÊNCIAS:

A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.


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