É coerente supor que para o behaviorismo radical não há problema mente‑corpo. Como vimos na seção 1.1, o problema mente‑corpo tem sua gênese na proposta cartesiana de que há uma dualidade substancial entre mente e corpo. Inevitavelmente, as teorias subsequentes tentaram resolver o problema através de abordagens fisicalistas que, a todo custo, buscavam explicar a mente sem ter que ir além da categoria substancialista.
Para o behaviorismo radical, por sua vez, o problema não se coloca, já que o comportamento é relação substancial. Por um lado, a contraparte substancialista da metafísica behaviorista radical deixa as portas fechadas para a multiplicação de entidades metafísicas substanciais no mundo, o que significa que não há dualismo substancial. Há apenas o mundo físico, mas isso não quer dizer que tudo o que existe nesse mundo deva ser reduzido à ou derivado da categoria substancial. Quando lidamos com o comportamento, estamos lidando com a contraparte metafísica relacional desse mundo.
O problema mente‑corpo não se coloca porque a sua gênese está na dualidade substancial – dualidade que é negada pelo behaviorismo radical por conta de sua posição monista fisicalista. E mais: por tratar do comportamento (mente é comportamento) a partir do discurso substancial, a postulação do problema mente‑corpo está errada em princípio, pois comete o erro categorial (Ryle, 1949) de alocar os conceitos comportamentais relacionais junto aos conceitos substanciais.
Causalidade mental
Uma das consequências imediatas da dissolução do problema mente‑corpo é a inexistência do problema da causalidade mental, cuja gênese está em duas proposições cartesianas. A primeira é a própria tese dualista, segundo a qual haveria duas substâncias distintas, a mental e a física, e a segunda é o interacionismo, isto é, a tese de que a mente e o corpo interagiriam (subseção 1.1.1).
No contexto da filosofia da mente contemporânea, por sua vez, o problema da causalidade mental consiste, fundamentalmente, em responder como é possível que exista algum tipo de poder causal da mente, enquanto “algo” distinto do físico (o que não quer dizer, necessariamente, que seja uma substância distinta), sobre o mundo físico. O problema emerge das próprias exigências fisicalistas.
Em linhas gerais, para o fisicalismo, a existência de alguma coisa está condicionada à sua capacidade de fazer diferença no mundo físico, ou seja, algo é real se fizer diferença; e fazer diferença, para o fisicalismo, é possuir papel causal (Zilio, 2010). Assim, se a mente for algo real, algo que faz parte do mundo físico, ela deve fazer diferença. Dessa forma, a questão central do problema mente‑corpo, sob a óptica fisicalista, é a seguinte: como é possível que exista causalidade mental no mundo físico? (Crane, 1992; Kim, 1998, 2005; Lowe, 1993; Sturgeon, 1998; Yablo, 1992).
O behaviorismo radical é, em princípio, contra a ideia de que existam “causas mentais” (seções 3.1, 3.2 e 4.4).2 Assim como as teorias eliminativistas, o behaviorismo radical é adepto da eliminação da psicologia popular enquanto ferramenta explicativa (seção 4.4). Negar essa função à psicologia popular, por sua vez, resulta na negação da realidade do mental (subseção 1.1.4), pois a “mente” não possuiria “papel causal”; e, por não o possuir, ela não seria “real”. Atribuir qualquer status causal à “mente”, qua mente, é caçar moinhos de vento, ou seja, é uma ilusão.
Por outro lado, conforme vimos na seção 3.2, os termos mentalistas podem, enquanto parte constitutiva do vocabulário dos membros de uma comunidade, auxiliar no controle do comportamento. Por exemplo, a descrição do próprio comportamento como resultante de “vontades”, “desejos” e “intenções” pode atuar como precorrente para classes operantes subsequentes. O sujeito, mediante uma situação de tomada de decisão (seção 3.1), diz para si mesmo que está com “mais vontade” de comer pizza do que nhoque.
Esse tipo de avaliação, mesmo envolvendo um termo inapropriado à ciência do comportamento, pode ajudá‑lo a decidir. Entretanto, aqui não estamos lidando propriamente com “causas mentais”, mas sim com as funções do comportamento verbal no controle de classes comportamentais. Por esse motivo, não há contradição em sustentar que haveria papel para os termos mentalistas no controle do comportamento de sujeitos ao mesmo tempo em que se mantém o posicionamento contrário à causalidade mental.
Fisicalismo
Um ponto importante que deve ser ressaltado é que a defesa do monismo fisicalista não implica necessariamente a defesa do fisicalismo. O fisicalismo é mais que o monismo fisicalista, pois abarca também a suposição de que tudo o que existe no mundo pode ser explicado pela óptica substancialista (Zilio, 2010). Stroud (1987, p.264) apresenta a seguinte definição do fisicalismo: “O mundo físico consiste inteiramente de fatos físicos.
O que não for um fato físico não é parte do mundo físico. E o fisicalismo é a tese de que o mundo físico é o único mundo que existe ou o único mundo que é real”. Para o behaviorismo radical, o mundo não é composto apenas por fatos físicos. Há no mundo físico comportamento, e, embora seja um evento físico, o comportamento é relação e esta não pode ser reduzida à substância. Skinner (1938/1966a, p.433) observa que o behaviorismo radical “não é necessariamente mecanicista no sentido de reduzir fundamentalmente o fenômeno do comporta‑ mento ao movimento das partículas, já que tal redução não é feita ou considerada essencial”.
Em diversas passagens do presente livro, por exemplo, transparece a irredutibilidade do comporta mento: em sua própria definição relacional (seção 2.1); nos conceitos genéricos que constituem a análise do comportamento (seção 2.3); nas críticas ao behaviorismo lógico no que concerne à teoria verificacionista do significado e à definição fisicalista de comporta‑ mento (seção 4.1); na crítica ao argumento do conhecimento privilegiado como prova da substância imaterial (seção 4.2); na crítica à teoria da identidade ou a qualquer teoria que pretenda identificar relações comportamentais (sensação, percepção, consciência, etc.) com estados fisiológicos (seção 4.3); na crítica ao projeto eliminativista de redução da teoria do comportamento às neurociências (seção 4.4).
Limites do conhecimento científico
Levando‑se em conta que, para o behaviorismo radical, fazer ciência é se comportar (seção 2.2), e que os limites do conhecimento são os limites do comportamento (seção 2.6), então os limites da ciência são os limites do comportamento do cientista. De especial interesse à concepção de ciência proposta pelo behaviorismo radical é a distinção entre comportamento modelado pelas contingências e comportamento governado por regras.
Imaginemos um cientista do comportamento trabalhando com esquemas de reforçamento num ambiente experimental. A contingência é bem simples: a presença da luz serve como estímulo discriminativo que sinaliza a possível ocorrência de estímulos reforçadores se respostas pertencentes à mesma classe ocorrerem. O cientista observa as ocorrências comportamentais do sujeito experimental, escreve algumas notas numa caderneta sobre a frequência de respostas, faz análises baseadas nos dados do registro cumulativo, dentre outras coisas.
Eventualmente, a partir do estudo de diversos sujeitos experimentais, será possível notar certos padrões que mais tarde poderão se tornar regras do condicionamento operante (seção 2.2). É coerente supor, tendo em vista esse exemplo, que toda a situação experimental controla o comportamento do cientista. Nas palavras de Skinner (1956, p.232): “O organismo cujo comporta‑ mento é mais extensiva e completamente controlado na pesquisa do tipo que descrevi [pesquisa experimental do comportamento] é o próprio experimentador”.
As contingências de reforço submetidas ao sujeito experimental, por exemplo, controlam as classes operantes do cientista no delineamento de uma teoria do comportamento. É por isso que Skinner era avesso à postulação de uma metodologia da ciência (seção 2.2). Antes de fazer “filosofia da ciência” seria preciso entender o comportamento do cientista – “Eu nunca esperei que a filosofia da ciência fosse contribuir para ciência”, disse Skinner (1983a, p.240).
O ponto central que se quer ressaltar aqui é que o resultado do comportamento do cientista – isto é, a teoria científica – não é a mesma coisa que as contingências que controlaram o comportamento do cientista no processo de construção da teoria. Assim, não há nenhuma razão para crer que uma análise puramente objetiva do fenômeno irá esgotar tudo o que há para saber sobre o fenômeno; ou que o intuito da ciência é desenvolver um substituto formal do fenômeno. As regras não espelham as contingências, mas apenas as descrevem (seções 2.5 e 4.5).
Sobre esse assunto, Skinner (1988, p.325) pondera que “descrições verbais da realidade nunca são tão detalhadas quanto a realidade em si”. Todo esse preâmbulo serve ao propósito de reafirmar a incorreção do argumento da cientista Mary (subseção 1.1.5 e seção 4.5), mas, ao mesmo tempo, também tem como função ressaltar uma questão crucial que não foi tratada na seção 4.5: os limites do conhecimento científico. Jackson (1982, 1986) afirma que Mary conhece tudo o que é possível conhecer sobre a fisiologia da percepção, mas que isso não esgota tudo o que envolve a percepção, e por isso o fisicalismo é falso.
O argumento está correto, mas Jackson (1982, 1986) tece conclusões erradas. Está correto porque a percepção é comportamento e, portanto, é relação; e relação não pode ser reduzida à análise puramente substancial da fisiologia – fazer isso seria cometer um erro categorial. Aliás, o caso de Mary é um bom exemplo dessa impossibilidade. Por sua vez, a conclusão de Jackson é errada porque se mantém na categoria substancial: se uma análise puramente fisicalista do mundo não esgota o mundo, então há propriedades mentais irredutíveis às propriedades físicas desse mundo.
A alternativa behaviorista radical é a seguinte: o mundo permanece substancialmente o mesmo, com apenas propriedades físicas, mas há também relação. A incompletude do conhecimento científico de Mary decorre do fato de que a ciência é descrição do fenômeno e não um substituto do fenômeno. Assim, Mary poderia conhecer tudo o que fosse possível sobre a percepção – tanto no âmbito fisiológico quanto no âmbito comportamental –, mas isso não seria o mesmo que passar pelas contingências que controlaram o comportamento do sujeito experimental.
E mais, esse limite do conhecimento científico não sugere a existência de propriedades não físicas no mundo; em vez disso, apenas indica o fato bastante evidente de que são relações diferentes – as regras não substituem as contingências que descrevem. A contraparte relacional da metafísica behaviorista, portanto, também nos ajuda a entender por que os limites da ciência não justificam a postulação de mentes imateriais ou de metafísicas substanciais diferentes do monismo fisicalista.
Qualia
“Qualia” é um termo técnico utilizado por filósofos da mente para se referir às propriedades qualitativas da experiência. De acordo com Block (1994, p.514), “os qualia incluem […] geralmente o que significa ter estados mentais. Os qualia são propriedades experien‑ ciais de sensações, sentimentos, percepções e, a meu ver, também de pensamentos e desejos”. Para Flanagan (1992, p.64), “um quale é um estado ou evento mental que tem, dentre suas propriedades, a propriedade de que há algo que significa estar em tal estado”.
Searle (1998, p.42), por sua vez, afirma que “estados conscientes são qualitativos no sentido de que para cada estado consciente há algo que significa possuí‑los, há neles um caráter qualitativo”. Em linhas gerais, as experiências seriam constituídas por um conjunto de qualidades que fazem delas as experiências que são. Uma experiência de “dor”, por exemplo, é qualitativamente diferente de uma experiência de “prazer”; a experiência de ver uma “bola vermelha” é qualitativamente diferente da experiência de ver uma “bola azul”; a experiência de ouvir uma sinfonia de Beethoven é qualitativamente diferente da experiência de ouvir uma ópera de Verdi; e assim por diante.
Como o behaviorismo radical, então, lidaria com as propriedades qualitativas da experiência? Trata‑se de uma questão pertinente, principalmente porque o argumento dos qualia parece ser a última carta na manga das teorias da mente que sus‑ tentam alguma forma de dualismo entre o mental e o físico (Den‑ nett, 1988/1997). Nesse caso, os qualia seriam propriedades essencialmente mentais irredutíveis a propriedades físicas. Reto‑ mando o caso da cientista Mary (subseção 1.1.5): mesmo sabendo tudo sobre a neurofisiologia da percepção visual, Mary aprendeu algo de novo quando saiu do quarto preto e branco.
Ela viu, pela primeira vez, a cor “vermelha” de uma maçã. Esse “algo de novo” sobre o qual Mary aprendeu seria o quale relacionado à experiência visual de coisas “vermelhas” e por ser incapturável por uma análise puramente e hipoteticamente completa das propriedades físicas relacionadas à percepção visual, tal quale – assim como todos os qualia – seria uma propriedade mental, em vez de física. O problema dos qualia esteve presente, sempre de maneira in‑ direta e não manifesta, em diversos momentos deste livro.
Há as seções acerca da percepção e sensação (seção 3.3), da consciência (seção 3.4) e da experiência (seção 3.5), que tratam de temas diretamente relacionados aos qualia. Em adição, é imprescindível levar em conta a teoria dos eventos privados proposta por Skinner (seção 2.6) e as análises do argumento do conhecimento privilegiado (seção 4.2) e do problema das qualidades e qualificações das experiências (seção 4.3) feitas a partir dela. Talvez seja justo afirmar que essas seções fornecem a base sobre a qual a análise behaviorista radical dos qualia deve ser fundada.
A partir dessa base, por sua vez, pretende‑se seguir nesta seção o seguinte roteiro de questões relacionadas ao tema: (1) Qual é a definição behaviorista radical de qualia? (2) Quais são as características dos qualia a partir da análise behaviorista radical? (3) Os qualia realmente existem? (4) Quais são as consequências dos qualia para a ciência do comportamento? Block (1994) e Flanagan (1992) afirmam que os qualia são propriedades qualitativas dos estados mentais.
Em princípio, essa definição não pode ser sustentada pelo behaviorismo radical, já que não haveria espaço para “estados mentais” em seu âmbito de discurso: processos normalmente caracterizados como mentais são na verdade comportamentais (capítulo 3); a linguagem mentalista é problemática e deve ser eliminada da ciência psicológica (seção 4.4); o posicionamento metafísico denominado relacionismo substancial sustenta que há apenas um mundo, o mundo físico, e que nesse mundo há comportamento (seção 5.3) – portanto, não há lugar para entidades, estados ou eventos que não sejam físicos ou comportamentais.
Entretanto, Searle (1998) nos dá uma dica de como proceder na definição behaviorista radical acerca dos qualia. O autor fala de “estados conscientes” e há no behaviorismo radical uma teoria da consciência (seção 3.4). Mas não é à definição de consciência como responder discriminativamente ao próprio comportamento, seja de maneira verbal (conhecimento “descritivo”), seja de maneira não verbal (conhecimento por “contato”), que de‑ vemos nos atentar. A análise deve focar a definição de consciência como “consciência fenomênica” ou “experiência” (seção 3.5), pois, como já foi dito, os qualia são propriedades qualitativas das experiências.
Estas, por sua vez, são definidas como o comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta (seção 3.5). Assim, numa primeira aproximação, para o behaviorismo radical os qualia seriam as propriedades qualitativas do comportamento. Searle (1998) ainda fornece outro indício que sugere essa definição. Para o autor (1998) não faria sentido perguntar o que significa ser uma pedra ou uma montanha, pois essas coisas não possuem “consciência” e, assim, não possuem estados qualitativos sobre os quais poderíamos indagar como seria possuí‑los. Por outro lado, faz sentido perguntar como é ser um morcego porque o morcego possui experiências.
Para o behaviorismo radical, por sua vez, faz sentido perguntar como é ser um morcego porque o morcego é um ser vivo que se comporta. Agora, não faz sentido perguntar como é ser uma pedra ou uma montanha, assim como não faz sentido perguntar como é ser um morcego morto, porque essas coisas não são seres vivos que se comportam. Em suma, a pergunta de Nagel (subseção 1.1.5) só faz sentido quando dirigida a coisas vivas que se com‑ portam e não propriamente a coisas que possuem uma “mente” ou “consciência”.
Portanto, os qualia não são propriedades qualitativas da “mente”, mas sim da experiência, ou seja, do comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta (seção 3.5). Há duas características principais relativas ao aspecto qualitativo do comportamento.4 A primeira delas é a subjetividade (Den‑ nett, 1988/1997). Por exemplo, dados dois sujeitos com “dores de dente”, é impossível saber se os qualia relacionados à experiência de ter uma “dor de dente” do sujeito S1 são idênticos ou mesmo minimamente semelhantes aos qualia relacionados à experiência de ter uma “dor de dente” do sujeito S2.
Os dentes inflamados podem apresentar semelhanças fisiológicas; os sujeitos podem descrever o que estão sentindo de maneira bastante semelhante; podem até exibir padrões comportamentais parecidos. Entretanto, nada disso implica que suas experiências sejam qualitativamente idênticas ou parecidas. Por isso dizemos que os qualia são essencialmente subjetivos. Para tratar dessa questão a partir do behaviorismo radical é interessante apresentar novamente uma citação de Skinner (1963a, p.952) que já foi discutida na seção 4.2:
O fato da privacidade não pode, evidentemente, ser questionado. Cada pessoa está em contato especial com uma pequena parte do universo fechada no interior de sua pele. […] Ainda que em algum sentido duas pessoas possam dizer estar vendo a mesma luz ou ouvindo o mesmo som, elas não podem sentir a mesma distensão do canal biliar ou a mesma ferida muscular.
No behaviorismo radical, a noção de privacidade é acompanhada pela tese de que existem eventos públicos e eventos privados. Os eventos privados seriam caracterizados principalmente pelas vias de contato com estimulações internas (i.e., fisiológicas), a saber, os sistemas nervosos interoceptivo e proprioceptivo. Em contrapartida, os eventos públicos seriam acessíveis a terceiros e poderiam incluir classes de comportamentos manifestos ou todo e qualquer estímulo com o qual entremos em contato via sistema nervoso exteroceptivo.
Retomando o caso desenvolvido na seção 4.2 da “dor de dente” do sujeito S e do dentista que lhe ofereceu tratamento. O dente inflamado é em princípio um evento “neutro”, ou seja, não é nem um estímulo público, nem um estímulo privado. Quando o dente inflamado exerce algum controle discriminativo sobre o comportamento do dentista, ele o faz via contato exteroceptivo: o dentista, por exemplo, vê o dente inflamado. Quando o mesmo dente inflamado exerce algum controle discriminativo sobre o comportamento do sujeito S, que, então, passa a dizer que está com “dor de dente”, ele o faz via contato interoceptivo e proprioceptivo: o sujeito S, por exemplo, sente a “dor” relacionada ao dente inflamado.
No primeiro caso, o dente inflamado é um estímulo público porque ele não está acessível exteroceptivamente apenas ao dentista: outras pessoas podem ver o dente inflamado. No segundo caso, por sua vez, o dente inflamado é um estímulo privado porque só o sujeito S é capaz de sentir a sua própria “dor de dente”. A dicotomia público‑privado, porém, não abrange o caráter subjetivo do comportamento por completo. Esse fato fica claro quando avaliamos um detalhe da passagem de Skinner (1963a, p.952, itálico adicionado): “Ainda que em algum sentido duas pessoas possam dizer estar vendo a mesma luz ou ouvindo o mesmo som […]”.
O que Skinner (1963a) quer dizer com “em algum sentido”? Uma interpretação possível é que duas pessoas estão vendo a mesma coisa porque a coisa vista é um estímulo público e que, por ser um estímulo público, as contingências de controle a ele relacionadas são mais precisas do que em relação aos eventos privados (seção 4.2). Assim, duas pessoas veem a “mesma coisa” quando a coisa vista possui função discriminativa semelhante e veem “coisas diferentes” quando a coisa vista possui função discriminativa diferente. Conforme vimos na seção 5.1, o mesmo “estado de coisas” pode constituir estímulos funcionalmente diferentes.
O que importa é a história de reforçamento responsável pelo repertório comportamental dos sujeitos. Se há discrepâncias entre como um sujeito S1 e um sujeito S2 respondem ao mesmo estado de coisas – que, nesse caso, constituiria dois estímulos diferentes, um para S1 e outro para S2 –, é só porque as classes comportamentais de S1 e de S2 devem ser funcionalmente diferentes. Todavia, esse seria apenas o primeiro passo da interpretação do trecho “ainda que em algum sentido”. A informação mais importante da passagem de Skinner (1963a) está no não dito. Há um sentido em que não podemos dizer que as pessoas veem a mesma coisa, mesmo que a coisa vista seja um estímulo público.
Duas pessoas talvez não vejam exatamente a mesma coisa porque todo comportamento é, enquanto experiência, subjetivo – as relações comportamentais são sempre as relações de um organismo único, e nunca poderemos adotar o seu “ponto de vista”, ou seja, saber como é ser esse organismo (seção 3.5). A experiência, portanto, mesmo que em sua contraparte pública, é sempre subjetiva. É nesse contexto, por exemplo, que intuitivamente dizemos que a experiência que o sujeito S1 tem acerca de coisas “vermelhas” não é necessariamente idêntica ou semelhante à experiência que o sujeito S2 possa ter de coisas “vermelhas”.
Suponha‑se que tanto S1 quanto S2 estejam diante de um mesmo “estado de coisas” e que esse estado de coisas exerça função discriminativa semelhante para classes operantes de S1 e de S2 – mesmo assim não saberemos se os qualia serão semelhantes. Por exemplo: S1 e S2 podem ser motoristas que pararam por conta do sinal “vermelho” de um semáforo. Há um evento físico (estado de coisas) que exerce, enquanto estímulo, função semelhante tanto para S1 quanto para S2, mas isso não quer dizer que as experiências de S1 e de S2 de ver a luz “vermelha” sejam semelhantes.
A segunda característica relativa às propriedades qualitativas da experiência é a inefabilidade (Dennett, 1988/1997). Por mais que uma pessoa seja capaz de descrever com riqueza de detalhes a sua “dor de dente”, essa descrição nunca substituirá a experiência propriamente dita; por mais que apresentemos uma análise completa dos correlatos neurofisiológicos da “dor de dente”, esses dados nunca substituirão a experiência propriamente dita; e por mais que correlacionemos a “dor de dente” a certos padrões comportamentais (tais como expressão facial de dor e grunhidos), essas correlações nunca serão a mesma coisa que a experiência propriamente dita.
Dessa forma, as propriedades qualitativas da experiência, ou seja, os qualia relacionados à “dor de dente” são inefáveis. A inefabilidade dos qualia é uma característica que pode ser sustentada pelo behaviorismo radical. Afinal, não possuímos conhecimento privilegiado acerca do nosso mundo privado. Pelo contrário, o conhecimento que possuímos é limitado, impreciso, defectivo e inacurado, pois as condições de controle são faltosas (seção 4.2). Dessa forma, o mero relato verbal da experiência nunca será preciso o bastante para “transmitir” ao interlocutor o quale da experiência.
Além disso, uma análise puramente fisiológica também nunca dará conta dos qualia, já que as experiências não são redutíveis a estados físicos. Tentar estabelecer uma correlação entre uma experiência e um estado neurofisiológico é transgredir a natureza relacional do processo (seção 4.3). Lembremo‑nos de que, para o behaviorismo radical, a experiência é o comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta. Sendo assim, não é possível falar de experiência sem falar de relação.
Conforme vimos na seção 4.3, seria um erro buscar identificar uma experiência com um estado cerebral porque a experiência é mais que um estado cerebral – é uma relação constituída por estados físicos, mas que é também caracterizada pela forma como entramos em contato com esses estados (proprioceptivamente, interoceptivamente e exteroceptivamente) e pela forma como chegamos a conhecê‑los. Tampouco podemos esgotar a experiência a partir de uma análise comportamental, pois observar e descrever um processo comporta‑ mental a ponto de localizar todas as variáveis das quais ele é função não significa quebrar a barreira da experiência (seções 4.5 e 6.4).
O cientista do comportamento nunca saberá como é ser um dado sujeito experimental, isto é, a ele é impossível possuir o ponto de vista em primeira pessoa que faz do comportamento de um organismo a sua experiência. Até o momento foram apresentadas respostas possíveis para duas das questões do roteiro programado para esta seção. Os qualia seriam as propriedades qualitativas da experiência, isto é, do comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta, e suas principais características seriam inefabilidade e subjetividade. Nesse momento é pertinente perguntar se, de fato, existem “propriedades qualitativas” da experiência para além de suas propriedades físicas e relacionais.
De acordo com o relacionismo substancial, tanto a substância quanto a relação são necessárias à existência do comportamento – essas são as categorias ontológicas que, se ausentes, resultariam em sua inexistência (seção 5.3). Entretanto, o discurso sobre os qualia parece sugerir que há uma terceira categoria referente à experiência: em adição à substância e à relação haveria as “propriedades qualitativas” ou os “qualia”. As duas primeiras seriam acessíveis a terceiros, enquanto a terceira seria inefável e subjetiva. E mais, dado que para a existência do comportamento as duas primeiras categorias seriam suficientes, torna‑se concebível a ideia metafísica de “zumbis filosóficos”: criaturas física e comportamentalmente idênticas a nós, seres humanos, exceto pelo fato de não possuírem experiências qualitativas (Chalmers, 1996).
O argumento dos zumbis é interessante porque obriga a mostrar quais seriam as condições necessárias e suficientes para a existência dos qualia. Se substância e relação são suficientes, então não é preciso postular a existência de uma terceira categoria. Por outro lado, se não o forem, então deve existir algo para além da substância e da relação. Ademais, como são essas as duas categorias necessárias e suficientes para a existência do comportamento, então a possibilidade de zumbis é meta‑ fisicamente aceitável.
Na presente análise, a substância e a relação são as categorias ontológicas necessárias e suficientes para a existência de experiências qualitativas. Essa questão já foi tratada na seção 4.3: tanto a substância quanto a relação são importantes na determinação das qualidades das experiências. A relação é importante porque a experiência é relação, e a substância – isto é, as características físicas do que é sentido, percebido, etc. – é importante porque constitui a “coisa” que é sentida ou percebida. Assim, qualquer criatura que possua constituição física e que se comporte, necessariamente possuirá experiências qualitativas.
Essa conclusão remete à ideia de Searle (1998) segundo a qual não faz sentido perguntar como é ser uma montanha ou uma pedra. Não faz sentido porque essas coisas não se comportam. Por outro lado, faz sentido perguntar como é ser um uma criatura se essa criatura se comportar. Então, “zumbis filosóficos” física e comportamentalmente idênticos aos seres humanos, exceto pela ausência de experiências qualitativas, não existem, nem mesmo enquanto possibilidade metafísica, dentro do contexto do relacionismo substancial.
Se no contexto do relacionismo substancial não há espaço para a existência de uma categoria adicional, então o que seriam as “propriedades qualitativas” da experiência? A hipótese defendida aqui é que o termo “qualia” seria uma armadilha conceitual fruto do mentalismo inerente ao vocabulário de psicologia popular da filosofia da mente em que é comum falar de “estados” ou “eventos” “mentais” que possuem “propriedades” distintas das propriedades físicas (seção 4.4). Um vocabulário que também não leva em consideração a contraparte relacional da metafísica behaviorista radical (seção 5.3) e que, por isso, tenta encontrar uma saída para o mistério da subjetividade através da admissão da existência de propriedades que, por não serem físicas, devem possuir outra natureza – “mental”.
Há aqui o resquício do substancialismo. Dado que essa hipótese transita pelo âmbito verbal, para justificá‑la é preciso avaliar quais seriam as condições que controlam o comportamento verbal de filósofos da mente que falam de “propriedades qualitativas” da experiência. Para tanto, o ponto de partida é a própria questão fundamental ao problema dos qualia: O que significa possuir um dado estado qualitativo? O que significa sentir uma “dor de dente”? O que significa ver uma “bola vermelha”? O que significa “ser um morcego”? Essas questões, evidentemente, fazem parte do repertório comportamental verbal dos sujeitos que as proferem e, enquanto tais, são estabelecidas e mantidas de acordo com as contingências de uma comunidade verbal.
E mais, a comunidade verbal ensina o sujeito a responder discriminativa‑ mente perante o seu próprio comportamento através da criação de conceitos ou abstrações que servem, justamente, para qualificar as experiências (seções 2.4, 3.1 e 4.3). O sujeito diz estar vendo uma “bola vermelha”, pois aprendeu a relatar uma dada resposta visual dessa forma. Mas a “vermelhidão” da bola é uma abstração, ou seja, é um construto verbal (seções 2.4 e 3.1).
Visto que a experiência é o comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta, então a experiência é um processo de fluxo contínuo e, por ser assim, as relações comportamentais nunca se repetem – nunca são exatamente as mesmas (seção 2.1). Devido a esse fato, quando os sujeitos da comunidade verbal se perguntam “O que significa possuir um estado qualitativo X?” eles estão lidando com construtos verbais, já que não há propriedades qualitativas per se, mas apenas respostas verbais discriminativas denominadas “abstrações” que atribuem a certas relações comportamentais propriedades qualitativas em comum.
A ilusão de que essas relações possam ser idênticas ou até mesmo semelhantes de‑ corre do fato de que as condições de controle relacionadas ao comportamento “consciente” nunca são precisas o bastante para que o sujeito seja capaz de sempre estabelecer diferenças entre experiências supostamente “semelhantes”. Além disso, devemos considerar que possivelmente existam limites fisiológicos (estruturais) relacionados aos sistemas nervosos interoceptivo, proprioceptivo e exteroceptivo – as vias de acesso que tornam a experiência possível – que também contribuem para o estabelecimento de limites ao comportamento discriminativo.
Em síntese, há a ilusão de que existem propriedades qualitativas porque a nossa capacidade discriminativa e o nosso sistema nervoso são limitados. Nunca sentiremos duas vezes a mesma “dor”, nunca veremos duas vezes a mesma “bola vermelha” e nunca ouviremos da mesma forma a “9a Sinfonia de Beethoven”. Acreditamos que temos “dores” semelhantes, que vemos a mesma “bola vermelha” e que ouvimos da mesma forma a “9a Sinfonia de Beethoven” porque, quando respondemos discriminativamente a essas experiências, estamos qualificando‑as e qualificar é um comportamento verbal relativamente independente das qualidades das experiências.
Retomando o “experimento de pensamento” do robô apresentado na seção 4.3: por mais que seja possível construir um robô que se assemelhe a nós, seres humanos, em todos os aspectos comporta‑ mentais, ainda assim não podemos dizer que esse robô possua experiências semelhantes às nossas. Falta‑lhe a constituição física humana – a “coisa” sentida (seção 4.3). O ponto, no entanto, é que mesmo assim esse robô pode qualificar suas experiências como “dolorosas” ou pode dizer que está vendo coisas “vermelhas”, pois esse tipo de comportamento é fruto das contingências estabelecidas por uma comunidade verbal, em vez de ser um vocabulário constituído e criado puramente de maneira privada.
Ressaltou‑se na seção 4.3, porém, que são duas questões diferentes, a das condições requeridas para que uma experiência possua a qualidade que possui e a das variáveis relevantes para os comportamentos de qualificação das experiências. Sendo assim, as qualidades das experiências são, em certa medida, independentes de suas eventuais qualificações e é justamente por meio do comportamento de qualificar que se cria a ilusão de que existam “propriedades qualitativas” das experiências. Até o momento apresentou‑se uma definição behaviorista radical dos qualia segundo a qual estes seriam as propriedades qualitativas da experiência, isto é, do comportamento sob o ponto de vista do organismo que se comporta.
Também foram analisadas duas características normalmente atribuídas aos qualia: inefabilidade e subjetividade. A inefabilidade indica que a experiência nunca será capturada por uma descrição verbal, por uma análise neurofisiológica, por uma análise comportamental ou pela junção de todas essas alternativas. A subjetividade, por sua vez, sugere que a experiência, mesmo envolvendo eventos públicos, é sempre a experiência de um organismo e que, por isso, o seu “ponto de vista” é intransferível a qualquer outro sujeito. Depois dessas avaliações, passou‑se a analisar a validade da própria existência dos qualia enquanto “propriedades qualitativas” das experiências.
À primeira vista, essa parece ser uma estratégia um tanto contraditória. Afinal, como é possível analisar as características dos qualia se, na verdade, não sabemos se eles existem? A contradição aumenta quando se chega ao resultado da presente análise: os qualia, enquanto “propriedades qualitativas”, são construtos verbais, abstrações, e, por‑ tanto, não possuem uma natureza ontológica em si. Como evitar essa contradição? A hipótese defendida nesta seção é que a subjetividade e a inefabilidade são características da experiência, ou seja, do comporta‑ mento sob o ponto de vista do organismo que se comporta.
Tais características, porém, não decorrem da existência de “propriedades qualitativas”, ou “qualia”, mas simplesmente do fato de que o comportamento é sempre o comportamento de um organismo único. O comportamento é a confluência de variáveis filogenéticas e ontogenéticas que são substancializadas em um organismo. As histórias relacionais filogenética e ontogenética de um organismo resultam num organismo fisiologicamente modificado. Dessa forma, cada organismo é substancialmente e relacionalmente único. Essa unicidade confere a ele o caráter subjetivo de sua existência.
A subjetividade é intransponível, o que significa que não podemos ser outro organismo porque estamos presos à nossa própria existência, e é por isso que há a inefabilidade. Tendo em vista a contraparte relacional da metafísica do behaviorismo radical, a subjetividade não é vista como resultado de uma propriedade não física do mundo, mas sim como resultado das próprias histórias relacionais filogenética e ontogenética que se encerram substancialmente num organismo. A subjetividade é fruto da relação substancial. Por outro lado, a existência de “propriedades qualitativas” é uma ilusão fruto do comportamento verbal relacionado à consciência (seção 3.4).
Quando um sujeito faz a pergunta “O que significa possuir um estado qualitativo X?” ou apresenta uma resposta “É como se…” ele está lidando com construtos verbais, já que não há propriedades qualitativas per se, mas apenas respostas verbais discriminativas denominadas “abstrações” que atribuem a certas relações comportamentais “propriedades qualitativas” em comum. No entanto, é importante notar que negar a existência de “propriedades qualitativas” não implica negar que haja um aspecto subjetivo ou, se quisermos manter o termo, “qualitativo”, do comportamento.
Mas esse aspecto indica apenas que o comportamento é sempre o comportamento de um organismo que possui um “ponto de vista” intransponível e, assim, inefável. Esse ponto nos leva à última questão do roteiro programado para esta seção: quais seriam as consequências dos qualia para a ciência do comportamento? Visto que a existência dos qualia, enquanto “propriedades qualitativas”, foi negada, torna‑se necessário reescrever a questão: quais seriam as consequências do aspecto subjetivo do comporta‑ mento para a ciência do comportamento? Há uma resposta relativamente simples para essa questão.
De acordo com Skinner (1990), a fisiologia responderá como é possível que os organismos se com‑ portem da maneira que se comportam e a análise do comporta‑ mento responderá por que os organismos se comportam da maneira que se comportam (seção 4.4). A questão essencial relacionada ao aspecto subjetivo da experiência, por sua vez, é: como é ser tal organismo? Não precisamos necessariamente saber “como é ser um organismo”, no sentido proposto por Nagel (subseção 1.1.5), para entendermos como e por que ele se comporta de uma dada maneira. Se essa fosse uma condição, nem a análise do comportamento, nem as neurociências teriam dado seus primeiros passos.
Por outro lado, ater‑se à questão subjetiva – como é ser tal organismo? – é essencial quando tratamos de questões éticas e morais. Um exemplo claro é a discussão ética acerca das pesquisas com animais não humanos. Por meio de informações relacionadas ao comportamento e à fisiologia de animais não humanos, podemos inferir, por exemplo, que eles também sentem “dor” (seção 4.3). Isso pode parecer evidente, mas não é: avançamos muito desde a crença cartesiana de que animais não possuíam “alma” ou “mente”.
Em suma, é a capacidade que temos de imaginar “como é ser outro organismo” que nos possibilita a empatia. Portanto, uma ciência do comportamento que contribua para o desenvolvimento de contingências relacionadas a essa questão, visando diminuir cada vez mais o abismo entre subjetividade e objetividade, mesmo que isso ocorra sempre de maneira indireta e inferencial, e mesmo sabendo que o abismo nunca poderá ser completamente transposto, é uma atividade legítima merecedora de atenção.
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
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