LER E ESCREVER NA EDUCAÇÃO INFANTIL
A aprendizagem da leitura e da escrita depende em grande parte da bagagem linguística recebida pela criança antes de ingressar no ensino fundamental, nas práticas realizadas em casa ou em outros ambientes. As situações vividas nos primeiros anos, tanto no ambiente familiar quanto na creche e na pré-escola, podem ser altamente benéficas para aprender a ler e a escrever (NATIONAL EARLY LITERACY PANEL, 2009; OEA, 2018). Recebem o nome de habilidades metalinguísticas aquelas que decorrem de práticas que desenvolvem a linguagem oral e favorecem a tomada de consciência da fala (GOMBERT, 1990, 2003).
Várias habilidades metalinguísticas se desenvolvem por meio de jogos e brincadeiras. Assim informam o mundo infantil e favorecem a emergência de novas habilidades, ao mesmo tempo que estimulam a convivência entre as crianças. Uma dessas habilidades é considerada essencial no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, pois facilita a compreensão do princípio alfabético: trata-se da consciência fonológica.
A consciência fonológica é uma habilidade metalinguística abrangente, que inclui a identificação e a manipulação intencional de unidades da linguagem oral, tais como palavras, sílabas, aliterações e rimas. À medida que a criança adquire o conhecimento alfabético, isto é, identifica o nome das letras, seus valores fonológicos e suas formas, emerge a consciência fonêmica, a habilidade metalinguística que consiste em conhecer e manipular intencionalmente a menor unidade fonológica da fala, o fonema (ADAMS et al., 2005; CAPOVILLA, A.; CAPOVILLA, F., 2000; CARDOSO-MARTINS, 2006).
O relatório Developing Early Literacy, do National Early Literacy Panel, mostrou que seis variáveis podem presumir fortemente o sucesso na alfabetização. Essas variáveis não apenas se relacionam com o desempenho em leitura e escrita nos anos iniciais do ensino fundamental, mas também se mantiveram como preditores poderosos ainda quando se controlou o efeito de outras variáveis, como o quociente de inteligência (Q.I.) e o nível socioeconômico.
Conhecimento alfabético: conhecimento do nome, das formas e dos sons das letras do alfabeto.
Consciência fonológica: habilidade abrangente que inclui identificar e manipular intencionalmente unidades da linguagem oral, como palavras, sílabas, rimas e fonemas.
Nomeação automática rápida: habilidade de nomear rapidamente uma sequência aleatória de letras ou dígitos.
Nomeação automática rápida de objetos ou cores: habilidade de nomear rapidamente sequências de conjuntos de figuras de objetos (por exemplo, carro, árvore, casa, homem) ou cores.
Escrita ou escrita do nome: habilidade de escrever, a pedido, letras isoladas ou o próprio nome. Memória fonológica: habilidade de se lembrar de uma informação dada oralmente por um período curto de tempo
Além dessas, há outras cinco importantes habilidades de literacia emergente que se relacionam a práticas de literacia. Contudo, não mantiveram seu potencial preditor quando foram incluídas outras variáveis. São as seguintes:
Conceitos sobre a escrita: conhecimento de convenções de escrita (por exemplo, esquerda-direita, cima-baixo) e de conceitos (capa de livro, autor, texto).
Conhecimento de escrita: combinação de elementos do conhecimento alfabético, conceitos sobre a escrita e decodificação inicial.
Linguagem oral: habilidade de produzir e compreender a linguagem oral, incluindo vocabulário e gramática.
Prontidão para leitura: geralmente uma combinação de conhecimento alfabético, conceitos sobre a escrita, vocabulário, memória e consciência fonológica.
Processamento visual: habilidade de parear ou discriminar símbolos apresentados visualmente.
Essas onze variáveis em conjunto predizem com consistência o desempenho posterior em leitura e escrita. Portanto, é recomendável que sejam promovidas na educação infantil, a fim de contribuir com o processo de alfabetização no ensino fundamental. Não se trata de alfabetizar na educação infantil, mas de proporcionar condições mínimas para que a alfabetização possa ocorrer com êxito no 1º ano do ensino fundamental (NATIONAL EARLY LITERACY PANEL, 2009).
Além daquelas destacadas no relatório do NELP, estudos mais recentes têm apontado a importância de outras habilidades, tanto para a literacia, quanto para a numeracia, como é o caso das funções executivas (MULDER et al., 2019), conjunto de habilidades desenvolvidas durante a primeira infância que se envolvem na regulação de outros processos cognitivos, possibilitando o controle e autorregulação de cognições, comportamentos e emoções. Dentre elas se destacam três principais:
Inibição ou controle inibitório: capacidade de inibir cognições ou comportamentos inadequados, ou ainda a capacidade de inibir a atenção a distratores.
Memória de trabalho ou memória operacional: habilidade de sustentar e operar mentalmente as informações, quer sejam auditivas/verbais, quer sejam visuoespaciais.
Flexibilidade cognitiva: capacidade de se adaptar às demandas do meio, de considerar diferentes perspectivas e alternativas de solução de problemas.
Os recentes estudos sobre as funções executivas demonstram que elas trazem benefícios nos anos posteriores de escolarização, quando estimuladas na educação infantil.
LER E ESCREVER NO ENSINO FUNDAMENTAL
Embora na educação infantil a criança deva adquirir certas habilidades e competências relacionadas à leitura e à escrita, é no ensino fundamental que se inicia formalmente a alfabetização. A entrada nessa etapa da escolarização, no entanto, pode mostrar-se muito diversa para a criança, a depender da sua experiência de vida, do ambiente e das condições socioeconômicas.
Pode-se dizer que algumas largam na frente e outras saem em desvantagem. De fato, algumas crianças, por conta das experiências relacionadas à leitura e à escrita vivenciadas em casa, ingressam no ensino fundamental com conhecimentos e habilidades fundamentais para a alfabetização adquiridos desde muito cedo, como o conhecimento alfabético e a consciência fonológica. Essas crianças terão mais possibilidades de obter sucesso no processo de alfabetização e de aprender a ler e escrever ao menos palavras e textos simples até o final do 1º ano.
Porém, como tais experiências de leitura e escrita estão muito associadas ao nível socioeconômico das famílias, se não houver uma atuação eficaz das escolas, principalmente das públicas, poderá abrir-se um fosso de aprendizagem entre as crianças de famílias mais favorecidas e as crianças de famílias menos favorecidas. Por isso é necessário ofertar a toda criança as condições que possibilitem aprender a ler e a escrever nos anos iniciais do ensino fundamental; daí a priorização da alfabetização no 1º ano como uma das diretrizes da PNA.
Já em 2005 o estado do Ceará, no relatório Educação de Qualidade Começando pelo Começo, recomendou que a alfabetização fosse priorizada na entrada do ensino fundamental, a par de uma proposta pedagógica específica, de um envolvimento maior dos gestores e de um sistema de avaliação de aprendizagem. Não se deve deixar de ressaltar para isso a importância da educação infantil, sobretudo da etapa pré-escolar, em que se devem enfatizar as habilidades e atitudes que predizem um bom rendimento na aprendizagem de leitura e escrita.
Ademais, a citada diretriz não está em desacordo com o que prescreve o texto da BNCC, segundo o qual o processo básico de alfabetização pode dar se em dois anos (no 1º e 2º ano do ensino fundamental). De fato, aprender as relações grafofonêmicas do código alfabético da língua portuguesa não significa esgotar totalmente o processo de aprendizagem de leitura e escrita, que inclui ainda a aquisição de fluência oral, a ampliação do vocabulário, as estratégias de compreensão de textos e outras habilidades e conhecimentos que devem ser adquiridos e desenvolvidos ao longo dos anos iniciais do ensino fundamental.
Igualmente, a criança dá os primeiros passos, depois aprende a caminhar, e em seguida a correr. Mas, para que haja êxito nesse processo, é indispensável um ensino conforme as evidências científicas mais atuais. Uma consulta aos diversos relatórios e documentos de políticas públicas voltadas à alfabetização, como o National Reading Panel e o Educação de Qualidade Começando pelo Começo, do Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar, revela cinco componentes essenciais para a alfabetização, a saber: a consciência fonêmica, a instrução fônica sistemática, a fluência em leitura oral, o desenvolvimento de vocabulário e a compreensão de textos.
Pesquisas mais recentes, no entanto, recomendam a inserção de outro componente, a produção de escrita, e assim se obtêm os seis componentes propostos pela PNA, nos quais se devem apoiar os bons currículos e as boas práticas de alfabetização baseada em evidências.
Consciência fonêmica: é o conhecimento consciente das menores unidades fonológicas da fala (fonemas) e a capacidade manipulá-las intencionalmente. Para desenvolver a consciência fonêmica, é necessário um ensino intencional e sistematizado, que pode ser acompanhado de atividades lúdicas, com o apoio de objetos e melodias. A consciência fonêmica conduz à compreensão de que uma palavra falada é composta de uma sequência de fonemas.
Isso será crucial para compreender o princípio alfabético, que consiste no conhecimento de que os fonemas se relacionam com grafemas ou, dito de outro modo, de que as letras representam os sons da fala (NATIONAL READING PANEL, 2000; GOMBERT, 2003; ADAMS et al., 2005).
A instrução fônica sistemática: leva a criança a aprender as relações entre as letras (grafemas) e os menores sons da fala (fonemas). “Fônica” é a tradução do termo inglês phonics, criado para designar o conhecimento simplificado de fonologia e fonética usado para ensinar a ler e a escrever.
Não se deve confundir a instrução fônica sistemática com um método de ensino. Ela é apenas um componente que permite compreender o princípio alfabético, ou seja, a sistemática e as relações previsíveis entre grafemas e fonemas (BRASIL, 2003, 2007; ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, 2011; CHALL, 1967).
O ensino do conhecimento fônico se mostra eficaz quando é explícito e sistemático (com plano de ensino que contemple um conjunto selecionado de relações fonema-grafema, organizadas em sequência lógica) (CARDOSO[1]MARTINS; CORRÊA, 2008).
Assim, as crianças aplicam na leitura de palavras, frases e textos o que aprendem sobre as letras e os sons. Portanto, a instrução fônica sistemática e explícita melhora significativamente o reconhecimento de palavras, a ortografia e a fluência em leitura oral (MULDER et al., 2017; CARDOSO-MARTINS; BATISTA, 2005).
Fluência em leitura oral: é a habilidade de ler um texto com velocidade, precisão e prosódia. A fluência libera a memória do leitor, diminuindo a carga cognitiva dos processos de decodificação para que ele possa concentrar-se na compreensão do que lê.
A fluência torna a leitura menos trabalhosa e mais agradável. É desenvolvida em sala de aula pelo incentivo à prática da leitura de textos em voz alta, individual e coletivamente, acrescida da modelagem da leitura fluente.
O monitoramento do progresso dos alunos na fluência permite ao professor conhecer com mais detalhes os problemas de leitura de cada um e assim oferecer-lhe a ajuda necessária. Professores e coordenadores pedagógicos devem levar em consideração, no processo de alfabetização, as pesquisas que indicam o número médio de palavras lidas com fluência ao final de cada ano do ensino fundamental I (EHRI et al., 2001; OLIVEIRA, 2008; RASINSKI; PADAK, 2005).
O desenvolvimento de vocabulário tem por objeto tanto o vocabulário receptivo e expressivo, quanto o vocabulário de leitura. Os leitores iniciantes empregam seu vocabulário oral para entender as palavras presentes nos textos escritos. Um vocabulário pobre constitui um obstáculo para a compreensão de textos. Por isso é recomendável que, antes mesmo de ingressar no ensino fundamental, a criança seja exposta a um vocabulário mais amplo do que aquele do seu dia a dia.
Pode-se desenvolver o vocabulário indiretamente, por meio de práticas de linguagem oral ou de leitura em voz alta, feita por um mediador ou pela própria criança; ou diretamente, por meio de práticas intencionais de ensino, tanto de palavras individuais, quanto de estratégias de aprendizagem de palavras. Um amplo vocabulário, aliado à capacidade de reconhecer automaticamente palavras, é a base para uma boa compreensão de textos.
A compreensão de textos é o propósito da leitura. Trata-se de um processo intencional e ativo, desenvolvido mediante o emprego de estratégias de compreensão. Além do domínio dessas estratégias, também é importante que o aluno, à medida que avança na vida escolar, aprenda o vocabulário específico necessário para compreender textos cada vez mais complexos. A compreensão não resulta da decodificação.
São processos independentes. Por isso é possível compreender sem ler, como também é possível ler sem compreender. A capacidade de decodificação, no entanto, é determinante para a aquisição de fluência em leitura e para a ampliação do vocabulário, fatores que estão diretamente relacionados com o desenvolvimento da compreensão (MORAIS, 2013).
Por fim, a produção de escrita diz respeito tanto à habilidade de escrever palavras, quanto à de produzir textos. O progresso nos níveis de produção escrita acontece à medida que se consolida a alfabetização e se avança na literacia. Para crianças mais novas, escrever ajuda a reforçar a consciência fonêmica e a instrução fônica.
Para crianças mais velhas, a escrita ajuda a entender as diversas tipologias e gêneros textuais. Conforme Silva (2013), Zesiger (1995) e Ajuriaguerra et al. (1979), a produção de escrita abrange diferentes níveis:
Nível da letra: caligrafia; envolve a planificação, a programação e a execução de movimentos da escrita.
Nível da palavra: ortografia; envolve operações mentais que permitem saber, por exemplo, que /mãw/ se escreve “mão” (e não “maum”).
Nível da frase: consciência sintática; envolve a ordem das palavras, as combinações entre as palavras e a pontuação.
Nível do texto: escrever e redigir; refere-se à organização do discurso e envolve processos que não são específicos da língua escrita, como a memória episódica (memória de fatos vivenciados por uma pessoa), o processo sintático e semântico
FONTE:
Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização. – Brasília : MEC, SEALF,2019.
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