Alfabetização e Educação Matemática: Qual é a Nossa Concepção?
Segundo NAGEL (s/d) “todo processo educativo tem como meta alterar comportamentos humanos para que, de forma mais disciplinada, o homem consiga avanços consecutivos ou produtos mais eficientes na resolução de suas necessidades ou problemas. ” Dentro desse mesmo espírito de ruptura em relação a um processo educativo que retira da escola o seu principal papel, o de transmissão e assimilação do conhecimento historicamente acumulado, é que propomos neste trabalho algumas reflexões e encaminhamentos teórico-metodológicos para o ensino da Matemática – Alfabetização Matemática – e que aqui passaremos a denominá-lo de Educação Matemática.
As reflexões apresentadas nos materiais disponíveis nessa área, de uma maneira geral, convergem para uma compreensão linear do conhecimento científico, ou seja, pautam-se em uma concepção cuja ciência é vista como imutável e natural. Nessa perspectiva, o conhecimento científico representa um todo harmonioso, cujos avanços se desenvolveram e ainda se desenvolvem em uma ordem pré-determinada, sem contradições. A questão decisiva deixa de ser, portanto, a verificação de que dado conhecimento é mais verdadeiro do que outro – tomando-se como critério sua emergência enquanto fruto do movimento real da sociedade – e passa a ser a constatação de que é mais desenvolvido ou mais evoluído do que outro, anterior ou coetâneo.
Em contraposição à visão idealista, a partir da matriz teórica referida por Marx na Ideologia Alemã como ciência da história tomada como pressuposto desta reflexão, constatamos que a produção da ciência não é resultado exclusivo do campo das leis da natureza, mas, também, do campo das leis sociais. A ciência numa perspectiva social é concebida como algo absolutamente integrado ao movimento de produção da vida dos homens, o que, por sua vez, gera novas necessidades. A concepção linear da ciência pode ser identificada e/ou encontrada na literatura pedagógica quando esta não fundamenta o desenvolvimento científico no princípio de sua produção como prática humana no interior das relações sociais.
Convém salientar, também, que percebemos uma forte tendência educacional apregoando a relação sujeito versus objeto na perspectiva de que o sujeito constrói o seu próprio conhecimento. Essa tendência não leva em consideração que o objeto do conhecimento não existe fora das relações humanas, sendo assim imprescindível à relação entre os sujeitos sociais para sua produção e apropriação, ou ainda, abstrai de sua análise que o educando é também sujeito do conhecimento, como todos os demais homens de dada sociedade. Verificamos também que ao excluir da produção da Matemática as relações humanas, as relações sociais que estão subjacentes, admitimos um desenvolvimento natural, ou seja, anistórico dessa ciência.
O que dessa afirmação podemos pensar, em primeira instância na Educação Matemática, é que os conteúdos escolares não são transmitidos como sendo o conteúdo social produzido pelas diversas sociedades para solucionar a sobrevivência humana. Esta perspectiva pressupõe o empobrecimento qualitativo da produção científica, pois o seu conteúdo torna-se ineficaz para revelar as determinações que as diferentes sociedades exerceram e exercem na produção científica, as grandes demandas do ser humano na luta pelo entendimento do Homem, do Universo.
Dado que a visão idealista deixa de oferecer ao educador e ao educando uma série de elementos indispensáveis à compreensão do processo científico – limitando-os em seu próprio método de conhecimento – verificamos a necessidade de analisar os conteúdos escolares que vêm sendo trabalhados pelos educadores matemáticos na sua prática educativa. Deparamo-nos, também, com uma grande parcela de materiais e encaminhamentos metodológicos, destinados ao Ensino de Matemática, pautados em princípios que estabelecem o rompimento entre o lógico e o histórico, entre a realidade e o pensamento, entre a prática social e a teoria que a expressa.
Se levarmos em conta esse empobrecimento do conteúdo científico, traduzido em conteúdos escolares, podemos compreender que o trabalho realizado no ensino de Matemática tem privilegiado a técnica em detrimento da compreensão; o decorar no lugar do memorizar; o rigor matemático em prejuízo das linguagens matemáticas; as definições estanques no lugar da conceituação; a exacerbação do cálculo escrito em dano ao cálculo mental, aproximado e exato (calculadora); a técnica de resolver problemas em detrimento da resolução; a sequência de fatos, datas, produções científicas como sinônimo de História da Matemática em prejuízo da História da Humanidade e da História da Ciência.
Nessa linha de interpretação, partimos do pressuposto de que a Educação Matemática possui uma lacuna nos seus pressupostos teórico-metodológicos, relativamente à concepção histórica de Ciência, o que resulta na dificuldade de se encontrar textos didáticos que privilegiem o desenvolvimento da Ciência enraizada no fundamento de sua produção, ou seja, a partir da prática humana como relação social. Queremos dizer, em síntese, que a produção didática em Educação Matemática não está sendo capaz de avançar na superação do conhecimento matemático estanque, compartimentalizado e imutável.
Verificamos também que, embora a produção científica na área de matemática e sua transmissão em âmbito educacional se realize em um contexto de enorme desenvolvimento técnico-científico, vivenciado especialmente após a metade do século XX, poucos educadores e educandos conseguem analisá-la sob o princípio da construção histórica do conhecimento. Como consequência, temos o predomínio de leituras lineares: lemos o passado sob os parâmetros do presente, percebendo, assim, as sociedades passadas como menos desenvolvidas e limitadas no que diz respeito a sua produção científica.
A Ciência sob esta visão passa a ter um caráter evolutivo, não-contínuo e linear. Esses aspectos são importantes na prática educativa, no intuito de superarmos alguns equívocos que se cristalizaram na Educação Matemática, tais como: a dificuldade do aluno na aprendizagem do conhecimento simbólico – alfabetização matemática –; o rótulo de que a Matemática é uma ciência dura, como sinônimo de ciência estanque e imutável; a exacerbação de que a Matemática se preocupa apenas com os números e não com os problemas humanos. Pretendemos com essa reflexão motivar os educadores matemáticos a procurarem construir uma nova visão sobre a ciência, sobre a Matemática, sobre a alfabetização matemática, sobre a educação e, especialmente, sobre o entendimento da vida na sociedade atual.
A partir disso, podemos definir o que é conhecer: é substituir essa mistura de confusão e dissociação, que é a representação puramente concreta das coisas, pelo mundo das relações. Um marco decisivo nesse processo é a tomada de consciência, por parte dos educadores, de que a solução dos grandes problemas da Educação Matemática – Alfabetização Matemática – no ensino e aprendizagem só será elaborada quando definitivamente compreendermos a nossa existência histórica enquanto instituição e humanidade.
Alfabetização Matemática: Ato de Ler e Escrever as Linguagens Matemáticas?
Estabelecendo um elo de passagem entre a concepção de educação matemática, a resolução de problemas e a alfabetização matemática, conceituamos que o terceiro elemento é a aprendizagem da leitura e da escrita na linguagem matemática. Já o segundo elemento é uma tendência em Educação Matemática e o primeiro salienta o nosso pressuposto teórico, elemento norteador da reflexão. Neste sentido, focalizamos a Alfabetização Matemática na perspectiva da Resolução de Problemas e das Linguagens Matemáticas, ou seja, os alunos precisam aprender a resolver problemas em matemática e aprender matemática resolvendo problemas.
Deter-nos-emos, neste texto, a aprofundar o segundo elemento, a Resolução de Problemas, cuja finalidade, em primeira instância, é a de incorporar no educando que o conhecimento científico, na escola expresso através dos conteúdos escolares, é a sistematização da produção material da vida de todos os homens e mulheres. Outra finalidade é a de desmitificar que os estudantes têm uma única alternativa de resolução e que os resultados obtidos na resolução de problemas não consistem em fracasso, mas em diferentes alternativas que os educandos encontram para solucionar os problemas com que se deparam. Metodologicamente, propomos alguns questionamentos, na Resolução de Problemas, que nos ajudam a superar o nosso modo de conceber o ensino-aprendizagem em Matemática:
- Quais são os conceitos necessários à resolução de um problema?
- Quais os conteúdos que podemos explorar?
- Quais as resoluções possíveis?
- O que significa resolver um problema em Matemática?
- Qual é a relação entre a Resolução de Problemas e a Alfabetização Matemática?
- A Resolução de Problemas é um conteúdo escolar ou uma metodologia de ensino?
Essas perguntas se aplicam sobremaneira às propostas pedagógicas que contêm, em seus pressupostos, a necessidade de superarmos o desenvolvimento linear da Matemática. Não podemos deixar de conceituar a Resolução de Problemas. Digamos aqui que os Problemas tratam de situações que não possuem solução evidente e que exigem que o resolvedor combine seus conhecimentos e decida como usá-los em busca da solução. Cabe salientar que a noção de Problema comporta a ideia de novidade, de algo nunca feito, de algo ainda não compreendido, ou ainda, toda situação que permite algum questionamento ou investigação.
Didaticamente, rompemos com os chamados problemas tradicionais que se caracterizam da seguinte forma: aparecem sempre após a apresentação de determinado conteúdo; o problema é resolvido retirando-se os dados do mesmo e estes aparecem explicitamente no enunciado; é resolvido aplicando-se um ou mais algoritmos; a solução não prevê o levantamento de hipóteses; a solução é literalmente traduzida em “ler o problema, resolver as operações e dar a resposta”; o elemento central é a resposta numericamente correta, a qual sempre existe e é única. Evidentemente que, ao romper com os chamados problemas convencionais, o ensino na perspectiva da Resolução de Problemas ganha um outro enfoque na sala de aula.
Além de caracterizarmos um problema em várias dimensões, tais como: problema do cotidiano; problema de cunho social; problema lúdico; desafio matemático; problema intrínseco à própria Matemática; problema clássico, etc; também encaminhamos a sua resolução de diferentes maneiras. Podemos falar, enfim, dos diferentes tipos de problemas matemáticos. A classificação dos problemas matemáticos está diretamente associada aos problemas fechados, que se classificam em exercícios de reconhecimento, exercícios algorítmicos e problemas de aplicação, e problemas abertos, que se classificam em problemas de pesquisa aberta e situações-problemas.
Vale notar que uma grande parcela de todos os exercícios e problemas do livro didático da Educação Infantil ao Ensino Superior, passando pelo Ensino Fundamental e Médio, recaem sempre no trabalho com problemas fechados, nos seus três tipos de classificação. Essa afirmação pode ser constatada na definição do que é um exercício algorítmico, um exercício de reconhecimento e um problema de aplicação. Podemos dizer que os exercícios algorítmicos são todos os exercícios que podem ser resolvidos passo-a-passo, tecnicamente, através de algoritmos numéricos. Já os exercícios de reconhecimento são todos os problemas que exigem do educando reconhecer ou recordar um conceito, uma definição, um teorema, uma linguagem matemática, um cálculo.
Finalmente, os problemas de aplicação são aqueles que envolvem algoritmos aplicativos, ou seja, o problema é apresentado simbolicamente e, depois, o educando deverá manipular os símbolos mediante algoritmos diversos. Recuperando a definição dos dois tipos de problemas abertos, percebemos que os problemas de pesquisa aberta são aqueles em cujo enunciado não há uma estratégia para resolvê-los. Esses problemas têm por característica a relação direta com os conceitos matemáticos elementares e/ou mais elaborados. É interessante, nesse sentido, observar que as situações-problemas têm sido, através do livro didático e de diversos encaminhamentos metodológicos, insistentemente colocadas como “novidade”, ou ainda, sugerem que ao trabalhar com as mesmas estaríamos explicitando uma nova visão para o ensino de Matemática.
É oportuno salientar que o “novo” não invalida o “antigo”. Trata-se aqui de evidenciar que é de suma importância, da Educação Infantil ao Ensino Médio, que o ensino-aprendizagem de Matemática seja permeado por: problemas fechados e abertos; conceitos; linguagens; cálculos; história da Matemática; jogos e desafios. A leitura que aqui se faz, portanto, é a de que ao introduzirmos nos bancos escolares a resolução de problemas deixamos de lado, por exemplo, os cálculos e/ou algoritmos. Parafraseando alguns educadores: não podemos, nessa “nova proposta”, ensinar “continhas” isoladas! Tal concepção postula através do discurso pedagógico, seja ele oral ou escrito, um contínuo afastamento dos fundamentos do ensinar e aprender.
Determinamos que é mais importante saber resolver problemas do que efetuar uma operação matemática. Esquecemo-nos que as técnicas de operar com números levaram milhares de anos para serem aprimoradas pela humanidade. Elas possuem uma grande importância na solução de problemas da sobrevivência humana e no entendimento do universo, pois as mesmas têm como objeto principal a operacionalização quantitativa da natureza e da sociedade. Insistimos nessa questão, pois a técnica de operar com números é a tradução matemática da relação historicamente construída entre o Homem e a Natureza e entre os próprios Homens.
É em virtude dessa reflexão que apontamos que as situações-problemas não são problemas propriamente ditos, mas situações nas quais uma das etapas decisivas é identificar o(s) problema(s) inerente(s) à situação, cuja solução irá melhorá-lo. Nesse ponto, cumpre retomar que as situações-problemas são situações reais, pertencentes à sociedade em que vivemos, que numa determinada etapa de sua solução exigem a matematização do problema, ou seja, abstrai-se, retira-se, da situação-problema algumas variáveis transformando-a em problema de cunho matemático. Pelo que vimos até agora podemos concluir que o ensino-aprendizagem de Matemática deverá ter como eixo organizador a resolução de problemas.
Propomos que esta seja o eixo organizador e não o único elemento a ser trabalhado no ensino de Matemática, ou ainda, não acreditamos que a resolução de problemas deva ter supremacia em relação aos outros conteúdos, tais como: conceitos, cálculos e linguagens matemáticas. Negando, portanto, toda e qualquer proposta educativa que não leve em consideração que estudar matemática é apreender o conhecimento elaborado e sistematizado por toda a humanidade, perguntamos: educadores brasileiros acreditam que educar seja desenvolver habilidades, competências e criatividade ou impregnar o nosso aluno de conhecimento?
O conhecimento deve ser, urgentemente, resgatado nos bancos escolares pois não queremos alunos educados para viverem adaptados à sociedade capitalista, mas sim, homens e mulheres capazes de compreender a sociedade em que vivem, sendo possível atuarem politicamente nela e coletivamente transformá-la. Reiteramos nesse texto que a educação, independentemente da extensão ou compreensão do seu conceito e/ou da contradição que esse conceito traz em si mesmo, consiste, em última instância, em ter como objeto o homem capaz de produzir a sua própria vida, ou seja, capaz de responder por sua subsistência com o padrão de excelência desejado, nunca inferior (pelo menos em ideal) ao conquistado no momento anterior. (NAGEL, s.d.)
Como consequência desse posicionamento, a alfabetização matemática deve, também, contribuir para o aprimoramento do pensamento reflexivo, ou ainda, devemos concebê-la como mais um elemento constitutivo de nossa consciência para que possamos, de maneira cada vez mais elaborada, pensar e interferir na realidade humana. Com base nessa afirmação, a resolução de problemas deverá estar permeada por esta concepção, acima mencionada, descaracterizando de uma vez por todas que resolver problemas em Matemática é desenvolver competências e habilidades básicas.
Não se trata, portanto, de considerar a Matemática como um campo da ciência desvinculada das relações sociais de produção mas, sim, de caracterizá-la como forjada pelas necessidades de dada sociedade. Finalmente, nosso objetivo é iniciar uma reflexão no âmbito da Alfabetização Matemática (Educação Matemática), que vise a mostrar que o conhecimento científico é o resultado do trabalho material de todos os homens e mulheres e, portanto, é mutável, contraditório, histórico e não fragmentado.
REFERÊNCIAS:
Orientações pedagógicas, matemática: sala de apoio à aprendizagem / Paraná. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Departamento de Ensino Fundamental. – Curitiba : SEED – Pr., 2005. – 130p.
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