A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

 “Para que a humanidade seja sempre feliz e perfeita, é necessário que ambos os sexos sejam educados segundo os mesmos princípios. Mas como será isso possível se apenas um dos lados, é o lado do direito e da razão?”

(Wollstonecraft – Filósofa americana do Século XVIII)

Poderíamos, apenas, fingir que as mulheres nada contribuíram na filosofia. Estaríamos, então, erguendo um muro em que o único critério de classificação para acesso ou exclusão fosse a distinção de gênero e sexualidade. Ficaria assim: campo dos homens: lugar filosofia – lugar do pensar crítico e rigoroso; campo das mulheres: campo da não filosofia – lugar do pensar não crítico e não rigoroso.

Falso problema? Imaginação? Não tanto.

A questão:

Hannah Arendt entrevistada numa emissora de televisão por um jornalista intelectual, ele lhe dirige a pergunta fatal: “Como a senhora se sente atuando no campo da filosofia onde somente homens atuam?” Hannah Arendt, de maneira muito gentil e bem humorada, elogiou a pergunta, consentiu que homens dominavam a filosofia e resumiu dizendo: “Estudei filosofia. Tenho, entretanto, que protestar, não pertenço ao círculo dos filósofos… sou uma A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidentalsocióloga política!” O entrevistador, nada convencido, arrematou: “Pois, para mim, a senhora é uma filósofa, veja seu livro: A Condição Humana”. 

(http://hannaharendt.wordpress.com/video-%c2%bfque-queda-queda-la-lengua-materna)

Ela devia ter toda consciência de que, mulheres adentrarem-se no campo disputado pela hegemonia masculina, era um ato de insurgência. Tanto o jornalista como a filósofa da liberdade, não deixaram oculta a tese de que a filosofia tem sido, reiteradamente, um território interditado às mulheres. É lógico que há, neste caso, no sentido vulgar uma “ guerra de sexos” e de gênero, produzida na/pela filosofia. A existência de uma luta desta natureza mostra os pés de barro da filosofia, sua fragilidade como racionalidade, seus pretensos critérios científicos de verdade; e, sobretudo, sua condição frágil de formuladora de um pensar isento de ideologias, rigoroso e crítico.

Quem é a mulher da Filosofia Moderna?

Será que existem teorias que circulam na filosofia carregadas de preconceitos contra as mulheres que justifiquem a desautorização prévia delas para o campo da filosofia?

Parece que sim. Vejamos Rousseau, o filósofo educador, em um dos seus raros textos menos felizes. Cuidado, porém, não atribua a Rousseau, como pessoa e como filósofo, a autoria do preconceito. Nele, fala a cultura moderna e iluminista, de seu tempo, que continua cobrindo o rosto no nosso tempo.

“Toda a educação das mulheres deve ter o homem como ponto de referência. Agradar-lhes, ser-lhes gentil, fazer-se honrada por eles, e educá-los quando pequenos, cuidar deles quando cansados, procurando tornar-lhes a vida agradável e quando crescidos, aconselhá-los.”

(J.J. Rousseau)

Chocante…

Vamos considerar, contudo, que haja um “equívoco” na argumentação que uso, atribuindo essa ideologia preconceituosa ao iluminismo, e não a Rousseau, enquanto indivíduo. Rousseau, de certa forma, era um filósofo secundário, e, inclusive, veementemente rejeitado pelos principais representantes iluministas, entre eles, Voltaire. Voltaire após ler O Emílio de Rousseau escreveu com sarcasmo uma carta dizendo-lhe que após a leitura de seu livro sentia “vontade de andar de quatro patas…” Desejo de abandonar a civilização e voltar à selvageria! Rousseau – romântico incurável! – acabara de tocar no nervo doído do movimento racionalista; agredira o pretendido progresso da racionalidade entendida como a única via de nos livrar da animalidade.

A ilustração, entretanto, era um movimento para homens, ligado inclusive às sociedades secretas, onde mulheres ficavam às suas portas. Aliás, até hoje, salvo extraordinárias exceções, cabe a condição de primeiras-damas pela índole gregária, social e solidária das mulheres, ficarem à sombra dos seus varões iluminados que conduzem o governo. A entrada das mulheres na política é concebida como a renúncia de sua condição feminina. Exatamente o argumento do jornalista à Hannah Arendt!

Mas… Vejamos, se em Kant , principal autor do Movimento das Luzes, o tom e o teor é diverso do discurso filosófico de Rousseau passemos, então, o palco e as luzes, para Immanuel Kant , o filósofo que cria e assina o Manifesto do Iluminismo: O que é o Esclarecimento? (Aufklärung).

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidentalDiz Kant:

“As mulheres evitam o mal, não porque o mal seja injusto, mas porque ele é feio. Não há nada nas mulheres que diga respeito ao dever, à necessidade ou à responsabilidade. A mulher é refratária a qualquer tipo de comando e a todo tipo de coação. Só realizam uma ação quando esta lhes pareça agradável(…) no lugar de seguir princípios (leia-se: princípios racionais!).”

E Kant continua a desenvolver em seus textos, a tese central do iluminismo, retomada com idêntico teor nas obras de Fichte e Hegel, de que a mulher é o belo sexo, tolo, e sem princípios racionais que estabeleçam a diferença entre a natureza e a cultura, entre a animalidade e o “fazimento” do progresso da racionalidade:

“Eu custo a acreditar – continua Kant – que o belo sexo seja capaz de princípios (…) Mas, no lugar de princípios, a Providência colocou no coração feminino sentimentos desprovidos de violência, um sentido refinado de decência e uma alma agradável.”

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

Não é à toa que Simone de Beauvoir, filósofa existencialista, companheira de Jean Paul Sartre, rebelara-se quando escrevera O Segundo Sexo! A invisibilidade da mulher aparecia, inclusive, – numa leitura vulgar da psicanálise de Freud – como um homem sem pênis, sem o poder conferido pelo falo.

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

Contemporaneamente, os estudos, pesquisas da academia se recusam a assumir uma linguagem de gênero, inclusive em textos escritos por mulheres. Considera-se isenção e justo usar uma linguagem pretensamente exata e rigorosa, cientificamente, que atribui as grandezas ontológicas do SER, ao “ser do homem”! Subscreve-se na prática a pior das ideologias políticas das teses iluministas aquela da presumível subserviência, inferioridade e, consequentemente, de discurso incompetente da mulher no campo da filosofia e da racionalidade.

Expor a nu a linguagem acadêmica causa menos desconforto e mal-estar à “ciência” e ao “rigor filosófico”. Esquece-se que nenhuma linguagem é neutra: é intencionadamente simbólica! Nenhuma linguagem expressiva deixa de ser um artefacto cultural, e espelha o espírito da mentalidade da ideologia moderna, também na filosofia. Fala-se, assim, de “HOMEM” quando se fala do SER! É lógico, que se funda nos mecanismos reprodutores da cultura erudita e científica, subsumir as mulheres sob consentida “universalidade” que dá conta de tudo – conceito de HOMO! (homem).

Será, contudo, que essa ideologia não é por sua vez justificável, uma vez que possui uma naturalidade no cientificismo, não criticado por nenhum intelectual, de que estaria promovendo a desigualdade política? Será que este conceito é coerente e rigoroso com pensar certo, que a filosofia pretende propor?

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

Como assumir uma linguagem da pretensa universalidade do Ser Homem, na filosofia, sem a má consciência de que sucumbimos numa trama perversa da ideologia da reprodução da hegemonia do macho ocidental, branco, cristão, totalitário? Que ética derivará desta filosofia? Que educação? Que tipo, então, de rigor se pretende na linguagem acadêmica e filosófica?

“Falar de Filosofia desenvolvendo problemas das mulheres e gênero, é voltar à pré-crítica da metafísica, tempos onde a filosofia podia falar metafisicamente de coisas que não existiam, apenas a face de um tanto outro que se esconde (…)No século XIX as mulheres aprenderam que o corpo é inimigo da alma. E, sugere Bourdieu, que o corpo oculto, tira as formas, curvas e contornos, é tirado os cabelos ou os raspa, por martírio do corpo real. O corpo torna-se objeto para a ciência, visto como doente, a gravidez, a maternidade, a puberdade, a menstruação, a menopausa.”

(Menezes, 2001).

Hannah Arendt não está só!

Há um crescente número de mulheres que como ela disputam, como pensadoras, um projeto diferenciado para a condição humana. E, não são as filósofas de estudo e profissão, são todas as mulheres que buscam transformar o mundo.

Recentemente num evento de uma sociedade científica, em S. Paulo, os homens filósofos, pensadores autorizados e reconhecidos nela, estavam à mesa, e, tímidos diziam: “Estou há dez anos às portas da filosofia!” Um após outro, radicalizava: “Estou há vinte anos nas portas da filosofia!” Uma das pesquisadoras “não-filósofa” pediu a palavra e provocou: – “Nós que há muitos anos estamos pensando, refletindo sobre a realidade, interferindo, gerando transformações no nosso meio, isso nada tem a ver com filosofia?”

A resposta foi o riso mudo e perplexo dos filósofos

Em Arendt, como em outras mulheres e homens, se tem arquitetado um projeto humano fundado numa epistemologia, para a construção de uma sociedade política, cujas bases da racionalidade é outra que difere daquela que tem sido servido como prato principal à mesa da Filosofia.

Cabe às mulheres, sobretudo, envolverem-se com um projeto anti-hegemônico contra o machismo inveterado da modernidade, que adotou como referência econômico-política, no ocidente, a cultura patriarcal, colonizadora e homogeinizadora da branquidade, do ponto de vista material e simbólico. Se trata, das mulheres disputarem como pensadoras um projeto humano, que as situem como pessoas racionais, de sexualidade, gênero, intuição, liberdade, arte e manha que tracem um destino novo ao mundo.

Não é que não existissem mulheres na filosofia, sempre as houve, mas foram invisibilisadas pelo irracionalismo macho, de plantão. Curiosamente, o caminho trilhado por Arendt foi na história da filosofia compartilhado de formas muito diferentes por outras mulheres; muito antes e depois dela, por sofrerem na própria carne a perseguição política e a exclusão, quando reivindicavam sua condição de parceiras políticas na parição de um novo mundo também racional.

As mulheres filósofas nunca fizeram a mesma filosofia. Romperam os limites das “grandes narrativas ”, diminuíram as fronteiras entre a teorias generalistas; concorreram para abrandar as divisões dos muros; escolheram, de modo geral, o mundo do cotidiano, da vivência; alinharam-se às filosofias humanistas, às filosofias da existência, a uma versão marxiana dialético histórica do marxismo ou da fenomenologia.

Hannah Arendt soma-se a Rosa de Luxem-burgo, Edith Stein, Simone Weil, Maria Zambrano, Agnes Heller, Simone de Beauvoir, Olga Benário, Pagu, Clarice Lispector, Chauí, que afrontam a hegemonia de um único ser sexuado universalmente, “o” homem, denunciando a pérfida hegemonia política e sexual masculina.

Alteraram a epistemologia denunciando o terror do totalitarismo (Arendt e Stein), o desenraizamento dos oprimidos (Weil), a negação do sonhos da adolescente judia, privadas da luz e condenada pelo totalitarismo nazista (Anne Frank); pela incapacidade do sistema de universalizar a autonomia política e cultural; por ser negado à fala feminina, a competência (Chauí) para tornar-se dirigente política e aliada dos processo revolucionários (Rosa de Luxemburgo, Olga, Pagu).

A Inexplicável invisibilidade das mulheres na filosofia ocidental

Sequer, perderam, sua vida pessoal e de mulheres: resistem à masculinização do poder. Recriam novas formas de poder político aliado à ética, à inteligência criativa e insubordinada, pensamento referenciado à ternura e à fecundidade. Alteram na filosofia a cultura machista, de branquidade e de dominação, os sistemas explicativos e interpretativos, introduzem para além do pensar, uma nova relação com o mundo, com os outros, recriando o ser mulher como intelectual, militante, companheira e, eventualmente, mãe.

REFERÊNCIAS:

Fundamentos de Filosofia: os caminhos do “Pensar” para quem quer transformação / Luiz Augusto Passos. — 1ª ed., 1ª reimp. — Brasília/DF: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, 2014.


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