Se há um contexto do qual é possível extrair informações relevantes para a discussão sobre a natureza do comportamento, então esse contexto é o da tensão entre substância e relação no behaviorismo radical. Portanto, em primeiro lugar, é preciso esclarecer em que sentido a substância não é importante para uma análise relacional. Em contrapartida, também é necessário mostrar em que sentido a substância é importante para a relação. A diminuição da importância da substância na filosofia behaviorista radical é um tema inerente a este livro.
É possível localizá‑lo em todas as seções dedicadas ao behaviorismo radical. Os primeiros indícios decorrem da própria definição de comportamento como um processo relacional de fluxo contínuo (seção 2.1). Outro sinal evidente é a definição relacional dos conceitos que constituem a análise do comportamento: estímulo, resposta, consequência, respondente, operante, comportamento verbal, comportamento governado por regras e comportamento modelado pelas contingências (capítulo 2).
Talvez o ponto demarcatório desse processo esteja na discussão de Skinner sobre o caráter genérico dos termos de sua ciência (seção 2.3). Nesse momento, o autor se desvencilhou das estratégias de definição e descrição fundadas puramente nas propriedades físicas dos eventos, para analisá‑los de acordo com seus papéis funcionais na relação comportamental. Contribuiu também para o distanciamento do discurso substancial a análise estrita‑ mente relacional feita dos processos normalmente classificados como mentais: pensamento, intencionalidade, conteúdos mentais, percepção, sensação, imagem mental, consciência e experiência (capítulo 3).
Há, além disso, a análise relacional dos problemas levantados pelas teorias da mente (capítulo 4). O ápice do distanciamento, enfim, se deu na seção anterior (seção 5.1), que discorreu sobre a desnecessidade de se estabelecer um ponto de vista metafísico no que diz respeito à natureza substancial do mundo quando o que queremos é desenvolver uma teoria do comportamento. É possível supor que haja três fatores centrais que justificam o distanciamento de Skinner em relação à importância da substância: a metafísica ausente, a concepção de ciência e a definição de comportamento.
Todos eles já foram detalhados ao longo deste livro, principalmente nas seções 2.1, 2.2, 2.3 e 5.1. A metafísica ausente apenas indica que não é necessário discorrer sobre problemas metafísicos para fazer ciência do comportamento. O segundo fator sustenta a tese de que é viável prover conhecimento científico efetivo para a previsão e o controle do comportamento sem depender do auxílio de análises no nível fisiológico (substancial). Trata‑se do argumento fundado nos interesses práticos da ciência do comportamento.
O terceiro fator, por sua vez, é de grande importância, pois é pressuposto essencial para a própria independência da ciência do comportamento em relação à fisiologia. Não seria possível – ou até mesmo coerente – postular a independência da ciência do comportamento se o seu objeto de estudo não possuísse alguma característica demarcatória que o tornasse discernível do objeto de estudo da fisiologia. É nesse ponto que entra a definição relacional: comportamento é relação. Uma ciência da substância, que é o caso da fisiologia, não daria conta da relação – é preciso uma ciência do comportamento.
De fato, todos os passos supracitados que envolvem o distanciamento do behaviorismo radical do âmbito substancialista decorrem desses três fatores. O relacionismo que define o comportamento interdita qualquer abordagem puramente substancial em sua caracterização. Já os objetivos práticos que definem a filosofia da ciência behaviorista radical tornam as investigações fisiológicas desnecessárias, pois é possível explicar o comportamento, a ponto de prevê‑lo e controlá‑lo, sem fazer referência a elas.
Além disso, os objetivos práticos da ciência do comportamento, que justificam a “metafísica ausente” do behaviorismo radical, tornam infrutífera qualquer discussão sobre a natureza substancial do mundo. Em poucas palavras, qualquer que seja o resultado final dessas divagações metafísicas (realismo, instrumentalismo, dualismo, idealismo, monismo fisicalista, etc.), ele não afetará o fato de que, pelo conhecimento construído mediante a prática científica do analista do comportamento, é possível prever e controlar o comportamento efetivamente.
Até o momento, apenas foram retomadas as razões para crer que a substância não é algo importante para o behaviorismo radical. Portanto, agora devemos fazer a seguinte pergunta: em que sentido a substância é importante para o behaviorismo radical? Mas não seria um contrassenso propor essa questão ao mesmo tempo em que há argumentos razoáveis que tornam a substância desimportante?
Não seria um contrassenso porque há uma delimitação bem clara quando se trata dos motivos que resultaram no distanciamento do behaviorismo radical em relação à análise substancial: o caráter prático que fundamenta a construção da ciência do comportamento; a ausência de comprometimentos metafísicos; e a definição relacional de comportamento. Haveria, então, algum lugar no behaviorismo radical para a importância da substância?
O caminho em direção a uma resposta positiva começa com a seguinte passagem de Skinner (1935/1961e, p.355, itálico adicionado): “Deve haver propriedades definidoras tanto do lado do estímulo quanto da resposta; caso contrário, nossas classes não terão referência necessária aos aspectos reais do comportamento”. Trata‑se de um trecho do artigo em que o autor pela primeira vez discorreu sobre a natureza genérica dos conceitos que figuram em sua ciência.
Skinner (1935/1961e) estava enfrentando um dilema: por um lado, era preciso que os estímulos e as respostas fossem passíveis de descrição por meio de suas propriedades físicas, já que são essas propriedades que os alocam na realidade empírica; por outro lado, a descrição baseada puramente nas propriedades físicas poderia transgredir a natureza relacional dos conceitos e do processo comporta‑ mental. A saída do autor foi propor a noção de classes (seção 2.3).
Ao tratarmos de classes de eventos não transgredimos o relacionismo nem deixamos de lado as propriedades físicas que os tornam “reais”. A questão é bem simples: quando descrevemos uma contingência, utilizamos a linguagem fisicalista substancial para caracterizar os termos envolvidos. Dizemos, por exemplo, “luz acesa”, “pressionar a barra com a pata” e “pelota de comida”. Em nosso próprio comportamento verbal utilizamos as propriedades físicas constitutivas dos eventos para descrevê‑los.
Ora, como poderíamos descrever um estímulo discriminativo “luz acesa” a não ser pela sua propriedade física e, portanto, substancial, de ser uma luz acesa? Outro modo de descrição é inconcebível. De nada adianta permanecer apenas no nível descritivo funcional porque dessa forma só teríamos conceitos vazios. Nem mesmo poderíamos afirmar que há um estímulo, que há uma resposta e que há uma consequência, pois a pergunta que se seguiria seria “Onde há?” e não é possível ir adiante com nosso discurso puramente funcional para responder a essa questão.
Em suma, precisamos do vocabulário substancial para alocar a relação na realidade – precisamos substancializar a relação. A noção de classes é importante porque, ao mesmo tempo em que permite que os conceitos comportamentais sejam descritos pelas suas propriedades físicas, também mantém a natureza relacional do processo. Isto é, ela estabelece um ponto de equilíbrio entre discurso substancial e discurso relacional que é imprescindível para a ciência do comportamento.
Embora descrevamos um estímulo discriminativo pela sua propriedade física “luz acesa”, não é a propriedade de ser uma luz acesa que o torna estímulo discriminativo, mas sim as contingências das quais ele faz parte. É na relação que a luz acesa se torna um estímulo discriminativo, mas é graças às suas propriedades físicas que é possível concebê‑la como estímulo discriminativo. É por isso que Skinner faz comentários como: “Os eventos que afetam um organismo devem ser passíveis de descrição na linguagem da ciência física” (Skinner, 1953/1965, p.36); e “Uma análise experimental descreve o estímulo na linguagem da física” (Skinner, 1966c, p.215).
É possível observar, inclusive, que há uma concatenação entre a importância da descrição fisicalista e os propósitos da ciência do comportamento na seguinte passagem de Skinner (1938/1966a, p.428‑9): “Um dos objetivos da ciência é provavelmente a exposição de todo o conhecimento em uma única ‘linguagem’. […] Outro é a predição e controle dentro de uma única área”. O behaviorismo radical é fiel aos dois objetivos.
A predição e o controle do comportamento configuram-se como os objetivos principais da ciência behaviorista radical e, ainda que as propriedades físicas descritas não sejam os aspectos demarcatórios das relações funcionais, podemos dizer seguramente que Skinner estava preocupado em manter o vocabulário fisicalista (substancialista) na descrição dos eventos de sua ciência.
Contudo, a importância da substância não envolve apenas o vocabulário utilizado na descrição das relações comportamentais: as próprias relações dependem de propriedades físicas. Esse fato é mais evidente no respondente, pois a “força” de uma relação desse tipo é produto das propriedades físicas dos estímulos (intensidade) e das respostas (magnitudes) dispostas em períodos de tempo variáveis (latência).
Conforme visto na seção 2.3, nas relações respondentes a variável independente é o limiar do estímulo, o que significa que as principais variações das relações respondentes ocorrem em função da manipulação direta das propriedades físicas dos estímulos eliciadores. Sendo assim, não é errado dizer que as propriedades físicas (substanciais) determinam as características das relações respondentes e que, portanto, não é possível subtrair a substância desse tipo de relação comportamental.
O que é possível dizer sobre as relações operantes? De acordo com o que foi apresentado na seção 2.3, as diferenças entre respondentes e operantes acerca de seus métodos de estudo e de suas medidas de análise indicam apenas que há papéis diferentes, mas não ausentes, para as propriedades físicas dos elementos constituintes das contingências. Em poucas palavras: a substância também é importante para o estabelecimento de relações operantes. A única diferença entre respondente e operante no que diz respeito às propriedades físicas dos estímulos e das respostas está em suas funções.
No respondente, as propriedades físicas são as responsáveis pelas características das relações. Por outro lado, no operante, as contingências é que são responsáveis pelas propriedades físicas dos ele‑ mentos que constituem a relação. Isto é: as propriedades físicas tanto dos estímulos quanto das respostas são selecionadas de acordo com as consequências (seção 2.3). Em suma, não há relação comportamental, seja respondente ou operante, sem substância. Entretanto, a importância da substância no behaviorismo radical vai um pouco mais além.
Skinner (1953/1965, 1956/1961j, 1957, 1957/1961d, 1963a, 1963b, 1983b) sempre se referiu à ciência do comportamento como parte das ciências naturais. Em suas palavras: “Ela é, eu assumo, parte da biologia. O organismo que se comporta é o organismo que respira, digere, engravida, faz gestação, e assim por diante” (Skinner, 1975, p.42); e “Observar uma pessoa se comportar […] é como observar qualquer sistema físico ou biológico” (Skinner, 1956/1961j, p.206). Portanto, a ciência do comportamento deveria tratar todos os fenômenos que dela são próprios a partir do vocabulário da ciência natural: o vocabulário fisicalista.
É por isso que Skinner é cuidadoso em sempre ressaltar que os eventos estudados pela ciência do comportamento são eventos físicos. Se fosse de outra forma, a ciência do comportamento não seria uma “ciência natural”. Esse cuidado é bastante evidente quando o autor trata dos eventos privados (seções 2.6 e 4.2): “Mas eu mantenho que minha dor de dente é tão física quanto minha máquina de escrever, embora não pública” (Skinner, 1945/1961g, p.285); “Um evento privado pode ser distinguido pela acessibilidade limitada, mas não […] por alguma estrutura ou natureza especial” (Skinner, 1953/1965, p.257); “Mas não se segue que essa parte particular [a privacidade] tenha qualquer propriedade física ou não física especial” (Skinner, 1954, p.304); “os eventos observados através da introspecção são fisiológicos (todo comportamento é fisiológico)” (Skinner, 1979, p.295); e, finalmente:
A objeção behaviorista não é primeiramente à natureza metafísica da substância mental. Eu acolho a posição, claramente favorável entre psicólogos e fisiologistas e de modo nenhum estranha à filosofia, de que o que nós observamos introspectivamente, assim como o que sentimos, são estados do nosso corpo. (Skinner, 1975, p.44)
Essa última passagem é especialmente importante, pois abrange tanto o discurso antimetafísico sobre a natureza substancial quanto a reafirmação do posicionamento behaviorista radical: o comporta‑ mento, seja privado ou público, é um processo físico. Dessa forma, é possível supor que o comprometimento com as “ciências naturais” contribuiu, ainda que de maneira indireta, para que Skinner estabelecesse sua posição sobre a natureza substancial do mundo. Esse fato fica mais evidente, porém, em suas críticas ao behaviorismo metodológico.
A diferença fundamental entre behaviorismo radical e behaviorismo metodológico está na forma como as teorias avaliam os eventos privados: “A distinção entre público e privado não é, de modo algum, a mesma que entre físico e mental. É por isso que o behaviorismo metodológico (que aceita a primeira) é muito diferente do behaviorismo radical (que elimina o último termo da segunda)” (Skinner, 1945/1961g, p.285).
Em síntese, para o behaviorismo metodológico, público denota físico e privado denota mental, e, para o behaviorismo radical, público e privado são eventos comporta‑ mentais diferenciados pela forma como se entra em contato com os estímulos e não pela natureza constitutiva desses eventos, o que significa que é errado fundamentar a dicotomia físico‑mental a partir da dicotomia público‑privado8 (seção 4.2). Outro ponto importante é que a forma como o behaviorismo metodológico coloca a questão acaba por resultar na defesa implícita do dualismo mente‑corpo.
Para o behaviorismo metodológico, não é viável estudar os eventos privados porque eles não são passíveis de verificação objetiva e, por essa razão, o valor de verdade das análises não pode ser atribuído consensualmente pelos cientistas. Trata‑se do argumento positivista lógico segundo o qual as condições de verificação dos termos psicológicos devem ser comporta‑ mentos físicos e observáveis publicamente (subseção 1.1.2 e seção 4.1). Nas palavras de Skinner (1953/1965, p.281‑2):
“Outra solução proposta ao problema da privacidade é que há eventos públicos e privados e que os últimos não possuem lugar na ciência porque a ciência requer concordância entre os membros da comunidade”. O problema com essa “solução”, continuando com Skinner (1953/1965, p.282), é o seguinte: “Longe de evitar a distinção tradicional entre mente e matéria, ou entre experiência e realidade, na verdade essa visão a encoraja. Ela assume que há, de fato, um mundo subjetivo que está além do alcance da ciência”.
Não é errado, portanto, defender que o âmago da distinção entre behaviorismo radical e behaviorismo metodológico está no fato de que o primeiro não deixa nenhum fenômeno comportamental de fora de sua análise, mesmo que esse fenômeno seja observável apenas ao ser que se comporta, e faz isso porque, a partir de seu posiciona‑ mento naturalista, todos os fenômenos comportamentais devem ser necessariamente vistos como fenômenos físicos.
E mais, todos os fenômenos naturais estão ao alcance das ciências naturais e, por esse motivo, negar o estudo dos eventos privados apenas por causa da privacidade poderia sugerir uma dualidade de natureza substancial entre mente e matéria – não é por ser privado que um fenômeno deve ser banido como objeto de estudo das ciências naturais.
Skinner (1945/1961g, p.284), ao discutir esse problema do behaviorismo metodológico, apresenta a seguinte conclusão: “O que está faltando [ao behaviorismo metodológico] é a corajosa e excitante hipótese behaviorista de que o que uma pessoa observa e fala sobre é sempre o mundo ‘real’ ou ‘físico’ (ou, ao menos, o ‘único’ mundo)”.
Em poucas palavras, ao discorrer sobre as diferenças entre behaviorismo radical e behaviorismo metodológico e ao se comprometer com as ciências naturais, Skinner inevitavelmente se valeu do discurso substancialista e acabou por deixar escapar supostos comprometimentos metafísicos acerca da natureza substancial do mundo. Também é possível notar a importância da substância para o behaviorismo radical quando Skinner discorre sobre o papel da fisiologia na explicação do comportamento: preencher as lacunas temporais e espaciais que a análise essencialmente histórica do behaviorismo radical possui (seção 4.4).
Em linhas gerais, as histórias filogenéticas e ontogenéticas dos organismos são substancia‑ lizadas pelas suas modificações fisiológicas. Um organismo que passou por uma história de condicionamento é um organismo fisiologicamente modificado. Buscamos o “por quê?” de seu repertório comportamental presente na sua história de condicionamento e buscamos o “como?” na análise substancial da fisiologia. Mas não é só no âmbito metodológico que a análise substancial da fisiologia traz informações relevantes para a análise relacional do behaviorismo radical. A própria relação depende da estrutura.
Essa consta‑ tação pode parecer óbvia, mas há uma grande diferença entre aceitar o auxílio metodológico da fisiologia para o preenchimento de lacunas inerentes à ciência do comportamento e postular a de‑ pendência existencial do comportamento em relação à estrutura fisiológica.
Em diversas passagens, Skinner parece sustentar a segunda tese: “O fisiologista estuda estruturas e processos sem os quais o comportamento não poderia ocorrer” (Skinner, 1963a, p.957); “Não há dúvidas sobre a existência de órgãos dos sentidos, nervos e cérebros ou sobre suas participações no comportamento” (Skinner, 1969d, p.25); “Dizem que os [behavioristas radicais] estão interessados no controle do comportamento, mas não em entender os mecanismos por ele responsáveis.
Tenho certeza de que há mecanismos, mas eles pertencem a uma disciplina diferente – fisiologia” (Skinner, 1983b, p.15); e “Todo comportamento é de‑ vido aos genes, alguns mais ou menos diretamente, e o restante por meio do papel dos genes na produção das estruturas que são modificadas durante o tempo de vida do indivíduo” (Skinner, 1988, p.430). Concluindo com Skinner (1969d, p.60):
Seria mais fácil enxergar como os fatos fisiológicos e comporta‑ mentais estão relacionados se tivéssemos uma explicação completa do organismo que se comporta – tanto do comportamento observável quanto dos processos fisiológicos que ocorrem ao mesmo tempo. […] O organismo seria visto como um sistema unitário, e seu comportamento claramente como parte de sua fisiologia.
A complementaridade entre fisiologia e análise do comporta‑ mento não se resume apenas ao nível metodológico (seção 4.4), mas se estende à própria existência do comportamento: não há comportamento sem substância (genes, cérebro, órgãos dos sentidos, músculos, e assim por diante).
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.