Bom, os negros foram uma solução para o “problema” da não “domesticação” do índio ao trabalho exploratório e com isso à escassez de mão-de-obra escrava. Sabemos que os negros que vieram para o Brasil eram de diferentes tribos africanas, cada uma com sua própria cultura. Como os índios, os negros africanos também sofreram adaptações e mudanças culturais, ou melhor, foram incorporados às regras dos colonilizadores europeus. A discussão sobre a escravidão dos negros no Brasil, desde os séculos XVIII, XIX e início do XX, foram convergentes em muitos estudos brasileiros.
Como vimos antes, a exemplo de Gilberto Freyre, que considerava harmoniosa a convivência entre negros e brancos, outros autores diziam totalmente o contrário. Florestan Fernandes, por exemplo, em seu livro A integração do negro na sociedade de classes (1978), analisa o processo de exclusão social que os negros sofreram. Mesmo depois da abolição da escravatura em 1888, houve um forte movimento que colocava como negativa a presença e influência dos negros no povo brasileiro. Acusavam a mistura racial como um fator de desequilíbrio na formação social e cultural, impedindo a unidade nacional e o desenvolvimento da nação.
A mestiçagem era fortemente condenada por alguns segmentos da sociedade brasileira da época, que desejavam e diziam ser necessário o embranquecimento da população. A vinda de muitos imigrantes europeus pode ser considerada como um dos elementos ideológicos de embranquecimento da população, atraídos pela propaganda de prosperidade, riquezas e uma vida nova no país promissor chamado Brasil. Bom, mas continuando com a análise sociológica de Florestan Fernandes, ele afirma que o negro sempre foi ativo na sociedade brasileira, participou de todas as transformações sociais pelas quais o país passou desde a sua Independência.
Quando houve a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, os negros passaram a concorrer com os outros trabalhadores nas cidades. Assim, acabaram nas ruas ou concordavam com as precárias ofertas de trabalho. Sabe por que isso ocorreu? A cidade não absorveu todos os negros, que agora perambulavam pelas ruas, muitos mendigando, à mercê da própria sorte ou, partiam para o interior para realizar trabalhos manuais, pois na cidade havia os trabalhadores estrangeiros que já eram acostumados aos moldes capitalistas de trabalho. Veja! A sociedade brasileira, após a abolição, “(…) largou os negros ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para corresponder aos novos padrões e ideias de homem criado pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista” (FERNANDES, 1978: 20).
Então, aprofunda-se aí, a marginalização do negro na sociedade brasileira capitalista e excludente. Acostumados ao trabalho escravo, manual e arcaico, não tinham uma organização de vida baseada nos moldes da organização do trabalho que surgia. Mas, você pode dizer: Como os negros eram ativos então? Ativos porque já faziam parte da sociedade brasileira, tinham um papel social, embora de maneira desigual. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922–1997), em O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, defende a importância dos primeiros negros no contexto da formação do povo brasileiro. Seriam “(…) agentes de europeização que difundiriam a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados às técnicas de trabalho, as normas e valores da subcultura que se via incorporado” (RIBEIRO, 1995: 116).
Serviram muito bem enquanto mão-de-obra escrava, que necessariamente levantou na força de seus braços o que hoje temos e somos, mas não foram contados como pioneiros ou como se dizem hoje, cidadãos honorários, importantes. Por muitas vezes a literatura brasileira traz a figura do negro seguindo um estereótipo elaborado pelo branco e esta condição o aprisionou nas teias do preconceito até os dias de hoje. As histórias infantis, os contos, fizeram ao longo da história uma narrativa do negro, associando-o a tudo que é ruim, feio e perigoso. O negro e sua condição de escravo virou um mito. Algo que não representava a realidade, mas uma fantasia, como se o negro não tivesse feito parte da história real do processo de miscigenação e da formação do povo brasileiro.
Monteiro Lobato (1882-1948), romancista e contista autor de livros infantis, construiu em suas obras um tipo ideal de povo brasileiro. Descreveu bem o distanciamento e a mitificação que muitas vezes a nossa sociedade tem do negro em relação à sua realidade e ao mesmo tempo denunciava em seus contos a crueldade e a violência da escravidão. Lobato cria então tipos raciais do brasileiro, mostrando aspectos negativos e positivos do povo negro e caboclo, por meio de personagens como o Jeca, que era um “CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças” (LOBATO,1956 apud MORAES, 1997: 103).
É no Sítio do Pica-Pau Amarelo, lugar inventado por Lobato e presente em diversas obras suas, que ganham destaque por sua singeleza, honestidade, bom humor, por exemplo, Tia Anastácia e Tio Barnabé, considerados por ele como representantes do povo brasileiro. Apesar disso, a figura do mulato e do negro continuou, na geração de Lobato e na realidade social da época, considerada de menor valor que a figura do branco. Para além de 1900, a situação do negro na sociedade de classes só andava de mal a pior.
Assim, como em Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, Lobato, em seus contos, denunciava a condição degradante do caboclo, do mestiço e do negro na época das grandes fazendas cafeeiras. Cunha (1866-1909), ao percorrer os sertões nordestinos, denunciava o preconceito e o abandono de um povo que poucas vezes era contado como brasileiro. Em determinados momentos e processos históricos, como diria Lobato, serviam para votar:
Quando a sociedade brasileira reconhece que o Jeca Tatu não era preguiçoso e vadio, já que assim era considerado devido à sua mestiçagem, e por conta do abandono do povo caipira, Jeca e seus companheiros começam a virar motivo de preocupação e eram agora debates nacionais. Como resolver a questão, de quem era a culpa de tantos transtornos, que num primeiro momento eram causados tão somente pelo povo caipira que não tinha se adaptado à sociedade rica e civilizada? Jeca Tatu passou a ser o Zé Brasil, homem simples e pobre.
Seus problemas seriam solucionados se tivesse umas terrinhas para plantar e viver sua vida, quem sabe como um ilustre fazendeiro. A figura do negro continuava sofrendo o preconceito e discriminação. Em Negrinha, Lobato retrata a violência com que os negros eram tratados. A negrinha, personagem que caracterizava a vida de uma criança negra, órfã, sofria constantemente os maus tratos de sua senhora, mesmo em tempos de abolição. A menina descrita no conto servia a uma senhora fazendeira, como uma lembrança do tempo em que o trabalho e todos tipos de afazeres eram realizados pelos negros escravos. Assim descreve Lobato:
Ai, não é de se estranhar na estrutura social brasileira um forte e arraiga[1]do sentimento etnocentrista!
Darcy Ribeiro, por exemplo, prefere dizer que o produto final e real da colonização, foi a formação de um povo-nação, repleto de uma diversidade cultural, característica da miscigenação, que ocorreu em nosso país. Segundo o autor, a nação ficou dividida em grandes grupos étnicos e nos chama a atenção de que não há um Brasil, mas “os brasis”. O Brasil sertanejo, caboclo, crioulo, caipira e gaúcho… Onde a perda de identidade do branco, do negro e do índio (no processo de miscigenação) fez surgir “o brasileiro”! Povo “misturado”, ora não definido! Sim, mas apesar de todas as diferenças: brasileiro! Não podendo haver o abandono, diagnosticado por Euclides da Cunha, na separação do Brasil do “litoral” e Brasil do “sertão”.
Sabe por que nós mesmos temos essa atitude etnocêntrica arraigada, que nos leva a não aceitar, dentro de nossa própria sociedade, determinados grupos étnicos? Temos uma consciência “contaminada”!
Hum, complicou? Vamos descomplicar e, entender o que é essa tal de consciência nas relações sociais. O antropólogo Levi-Strauss nos ajuda a entender que a nossa vida social é “moldada” pelas estruturas sociais. As nossas relações sociais são “determinadas” por modelos (que são um conjunto de ideias pré-elaboradas, chamadas por este autor de “estruturas”). As estruturas sociais são como modelos sociais! Agimos na sociedade, na nossa vida cotidiana, obedecendo de forma “inconsciente” a esses modelos. E assim, ocorre o que disse Durkheim, somos “condicionados” na nossa maneira de vestir, pensar, agir…
Ou seja, a “consciência” é aquilo que conseguimos ver e realizar, isso ocorre nas nossas relações sociais. Uma pessoa que discrimina outra por sua cor, ou ainda grupos étnicos que não aceitam outro grupo étnico, estão tendo tal atitude por causa do “inconsciente”, que são as estruturas da sociedade, as ideias que a sociedade faz das pessoas de cor, ou dos grupos étnicos que não são valorizados na sociedade. Nossa sociedade brasileira foi estruturada na não-compreensão e não-aceitação de sua diversidade… Eis aí o motivo da nossa crise de identidade. Muitos de nós não queremos parecer conosco mesmos! Preferimos pensar que outras nações e culturas são melhores que a nossa! E assim reproduzimos, em nossas relações sociais, atitudes de discriminação ou etnocêntricas!!
Mas, contudo, o discurso simplista e conformista, de atribuir ao inconsciente (as estruturas sociais), as atitudes preconceituosas, muitas vezes oculta a ideologia que persiste ainda hoje em nossa sociedade de que as diferenças raciais, étnicas e culturais são o motivo do não desenvolvimento e progresso da nação. Nosso país é rico em toda a sua diversidade, não se constitui, então, em “problema” a miscigenação e nem tão pouco as imigrações que aqui se firmaram e formou o Brasil. Presenciamos, hoje, muitos “entraves” econômicos e políticos que não têm em sua gênese relação com as questões raciais e étnicas.
RERERÊNCIAS:
Sociologia / vários autores. – Curitiba: SEED-PR, 2006. – 266 p.