Mary, regras e contingências

Mary, regras e contingênciasO objetivo desta seção é delinear uma resposta behaviorista radical ao argumento do conhecimento proposto por Jackson (1982, 1986). Em síntese, o argumento do conhecimento sugere que Mary, uma neurocientista que sabe tudo o que é possível saber sobre os processos neurofisiológicos da percepção visual de cores, mas que viveu a vida inteira sendo afetada visualmente apenas por estímulos em preto e branco, ao se deparar com estímulos de outras cores aprendeu algo novo – algo que a mais completa pesquisa neurofisiológica não foi capaz de ensinar: o conhecimento advindo das experiências subjetivas.

Mary conseguia correlacionar processos cerebrais com percepções de “maçãs vermelhas”, mas ela nunca havia experienciado algo da cor “vermelha”. Ao sair do mundo preto e branco em que vivia, Mary percebeu que seu conhecimento neurofisiológico não era o bastante, pois, se fosse, nada de novo ocorreria com sua saída (subseção 1.1.5). Como avaliar essa situação pela óptica behaviorista radical? De início, devemos nos perguntar o que Mary realmente sabia. Suponha‑se que Mary esteja rodando um experimento em seu laboratório.

Numa sala à qual Mary não tem acesso direto, o sujeito S está diante de um estímulo visual “vermelho”. Mas não é essa situação que controla o comportamento da cientista Mary. Ela não tem acesso ao estímulo visual “vermelho”. No máximo, pode ter acesso a leitores que apresentam notações matemáticas, fórmulas físicas, etc., condizentes à presença do estímulo visual “vermelho”. Assim, quando o sujeito S está diante de um estímulo visual “vermelho”, Mary tem acesso a esses dados.

Por outro lado, através de um monitor preto e branco, Mary tem acesso às modificações que ocorrem no cérebro do sujeito S e ela sabe quais são as modificações fisiológicas específicas causadas por estímulos visuais “vermelhos”, o que torna possível a ela estabelecer correlações entre estimulações “vermelhas” e respostas visuais eliciadas por elas. A situação que controla o comportamento verbal da cientista Mary e faz com que ela afirme que o sujeito S está vendo algo “vermelho”, portanto, são essas notações sobre as características físicas dos estímulos e seus efeitos sobre a fisiologia cerebral de S. Trata‑se da situação exposta no Quadro 4.2.

Mary, regras e contingências

No primeiro quadro temos a situação sob o ponto de vista do sujeito S. Há um estímulo “vermelho” (Se) que elicia a resposta visual incondicionada do sujeito S (Rvi). A resposta visual eliciada pela estimulação estabelece, então, a ocasião para o relato verbal de S segundo o qual ele estaria “vendo uma maçã vermelha” (Rv). No segundo quadro, por sua vez, temos Mary observando o sujeito S, mas sem ter acesso ao estímulo visual. Uma pergunta importante: Mary teria acesso à resposta verbal de S? Suponha‑se que sim, já que a restrição de Jackson (1982, 1986) cabe apenas ao contato com estímulos de outras cores que não preto e branco e, portanto, não atinge os relatos a respeito da percepção visual.

Dessa forma, a tarefa de Mary é relativamente simples: ela observa as notações sobre o estímulo visual seguindo‑se de mudanças específicas na fisiologia cerebral de S e, por fim, serve de ouvinte para o relato verbal de S. Depois de diversos experimentos, com diversos sujeitos experimentais, Mary passa a detectar certos padrões nessa relação. Por exemplo: os sujeitos respondem verbalmente que estão vendo estímulos “vermelhos” logo depois que notações do tipo “X” sobre o estímulo ocorrem e são seguidas de modificações fisiológicas do tipo “Y”.

Mary até mesmo passa a ensinar, no papel de membro da comunidade verbal, os sujeitos experimentais a responderem discriminativamente às respostas visuais eliciadas. Após a ocorrência do estímulo de notações do tipo “X” e de modificações fisiológicas do tipo “Y”, Mary pode dizer ao sujeito experimental: “Você acabou de ver um objeto vermelho”. Entretanto, o que está em questão é o controle do comporta‑ mento verbal de Mary sobre o conceito de “vermelho”.

Mary está sob controle de regras científicas que descrevem as contingências pelas quais os sujeitos experimentais passaram. Como vimos na seção 2.5, porém, as regras não substituem as contingências que descrevem. É evidente que Mary pode estudar e postular tudo que for possível sobre a percepção visual, mas o resultado de todo esse processo será a construção de regras científicas. Talvez o problema no argumento do conhecimento esteja em sustentar, mesmo que de maneira velada, a ideia de que as regras produzidas pela ciência, se completas, deveriam ser idênticas aos fenômenos aos quais elas se dirigem.

Assim, conhecer todas as regras sobre a percepção visual seria o mesmo que ter todas as percepções visuais. Mas não é isso o que ocorre: seria o mesmo que dizer, por exemplo, que, ao desenvolver a teoria da relatividade, Einstein experienciou a relatividade. Para o behaviorismo radical, o ponto central é que regras e contingências são coisas distintas: regras, mesmo que na forma de teorias científicas, são descrições das contingências e essas descrições não são as contingências.

Sendo assim, ao se libertar do mundo preto e branco, Mary pela primeira vez passou por contingências que envolviam estímulos “vermelhos”. Esses estímulos a afetaram de uma maneira específica, produzindo respostas visuais incondicionadas de ver algo “vermelho”, e a comunidade verbal, então, a ensinou a responder discriminativamente dizendo que o que ela via era algo “vermelho”. Assim, o conceito de “vermelho”, no repertório verbal de Mary, passou a ser controlado tanto por eventos privados relacionados à sua própria experiência visual quanto por notações físicas sobre estímulos “vermelhos” que afetaram os sujeitos experimentais de seus estudos.

Dizemos, então, que Mary aprendeu algo de novo? Sim, pelo simples fato de que ela passou por novas contingências de reforço. E isso invalidaria ou diminuiria o alcance do estudo objetivo da percepção visual ou de qualquer processo fisiológico ou comporta‑ mental? Não, pois a ciência, para o behaviorismo radical, pretende apenas descrever as contingências para delas extrair teorias (seção 2.2).

A ciência não deveria ter pretensões de fornecer algo que seja idêntico às contingências porque, por definição, isso seria impossível. E mais importante: não há nenhuma relação necessária entre aceitar esse suposto “limite” da ciência e postular a existência de propriedades mentais irredutíveis.

Primeiro porque esse “limite” não atinge apenas as “ciências da mente”, mas é uma característica da própria ciência: ser uma enciclopédia de regras sobre as contingências e não ser as contingências propriamente ditas. Segundo porque, ao sair do quarto preto e branco e aprender algo novo, Mary apenas passou por novas contingências, e não há nada de mental nas contingências.

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REFERÊNCIAS:

A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.