As ideias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas
Quando analisamos a prática pedagógica de qualquer professor vemos que, por trás de suas ações, há sempre um conjunto de ideias que as orienta. Mesmo quando ele não tem consciência dessas ideias, dessas concepções, dessas teorias, elas estão presentes. Para compreender a ação do professor, é preciso analisa-la com o objetivo de desvendar os seguintes aspectos:
- qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do conteúdo que ele espera que o aluno aprenda;
- qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do processo de aprendizagem, isto é, dos caminhos pelos quais a aprendizagem acontece;
- qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, de como deve ser o ensino.
A teoria empirista – que historicamente é a que mais vem impregnando as representações sobre o que é ensinar, quem é o aluno, como ele aprende e o que e como se deve ensinar – se expressa em um modelo da aprendizagem conhecido como de “estímulo-resposta”. Este modelo define a aprendizagem como “a substituição de respostas erradas por respostas certas”. A hipótese subjacente a essa concepção é que o aluno precisa memorizar e fixar informações – as mais simples e parciais possíveis e que devem ir se acumulando com o tempo.
O modelo típico de cartilha está baseado nisso. As cartilhas trabalham com uma concepção de língua escrita como transcrição da fala: elas supõem a escrita como espelho da língua que se fala. Seus “textos” são construídos com a função de tornar clara (segundo o que elas supõem) essa relação de transcrição. Em geral, são palavras-chave e famílias silábicas, usadas exaustivamente – e aí encontram-se coisas como o “bebê baba na babá”, “o boi bebe”, “Didi dá o dado a Dedé”.
A função do material escrito numa cartilha é apenas ajudar o aluno a desentranhar a regra de geração do sistema alfabético: que “b” com “a” dá “ba”, e por aí afora. Centrada nesta abordagem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no mundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases desconectadas.
Esta concepção de “texto para ensinar a ler” está tão impregnada no imaginário do professor que, certa vez, uma professora que se esforçava para transformar sua prática documentou em vídeo uma aula e me enviou, para mostrar como já conseguia trabalhar sem a cartilha. A atividade era uma produção coletiva de texto na lousa. O texto produzido pelos alunos e grafado pela professora era o seguinte:
O SAPO
O sapo é bom.
O sapo come inseto.
O sapo é feio.
O sapo vive na água e na terra.
Ele solta um líquido pela espinha.
O sapo é verde.
Como se pode observar, cada enunciado é tratado como se fosse um parágrafo independente. Exigências mínimas de coesão textual, como não repetir “o sapo” em cada enunciado, nem sequer são consideradas. Só na quinta frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir “o sapo”.
E na sexta frase, lá está ele de novo. Seria fácil concluir que a professora é que não sabe escrever com um mínimo de coerência e coesão. Mas não era esse o caso. Além de saber escrever, era uma ótima professora: empenhada e comprometida com seu trabalho e seus alunos.
Apenas havia interiorizado em sua prática o modelo de “texto” que caracteriza a metodologia de alfabetização expressa nas cartilhas. E de tal maneira, que nem sequer tinha consciência disso: foi preciso tematizar sua prática a partir dessa situação documentada para que ela pudesse se dar conta.
COMO A METODOLOGIA DE ENSINO EXPRESSA NAS CARTILHAS CONCEBE OS CAMINHOS PELOS QUAIS A APRENDIZAGEM ACONTECE
Poderíamos dizer, em poucas palavras, que na concepção empirista o conhecimento está “fora” do sujeito e é internalizado através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito da aprendizagem seria “vazio” na sua origem, sendo “preenchido” pelas experiências que tem com o mundo. Criticando essa ideia de um ensino que se “deposita” na mente do aluno, Paulo Freire usava uma metáfora – “educação bancária”– para falar de uma escola em que se pretende “sacar” exatamente aquilo que se “depositou” na cabeça do aluno. Nessa concepção, o aprendiz é alguém que vai juntando informações.
Ele aprende o “ba, be, bi, bo, bu”, depois o “ma, me, mi, mo, mu” e supõe-se que em algum momento, ao longo desse processo, tenha uma espécie de “estalo” e comece a perceber o que é que o “ma”, o “me”, o “mi”, o “mo” e o “mu” têm em comum. Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam e de ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir de uma determinada quantidade de informações. Na verdade, o modelo supõe apenas a acumulação. Os professores é que, convivendo com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando na figura do “estalo” a resposta para certas ocorrências aparentemente inexplicáveis.
Porque sabem que alguns entendem o sistema logo que aprendem algumas poucas famílias silábicas, enquanto outros chegam ao “Z”, de “zabumba”, sem compreendê-lo. E já que não têm como entender essas diferenças, buscam explicações no que se convencionou chamar de “estalo”. Frequentemente dizem: “O menino deu o estalo”, ou “Ainda não deu o estalo, mas uma hora vai dar”. Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo para reconhecimento das famílias silábicas quando o professor toma a leitura.
Essa forma de trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras, para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos.
Assim, os três tipos de concepção a que nos referimos no início deste capítulo se articulam para produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo) é vista como transcrição da fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino deve investir na memorização. Na verdade, qualquer prática pedagógica, qualquer que seja o conteúdo, em qualquer área, pode ser analisada a partir deste trio: conteúdo, aprendizagem e ensino.
PARA MUDAR É PRECISO RECONSTRUIR TODA A PRÁTICA A PARTIR DE UM NOVO PARADIGMA TEÓRICO
Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um modelo construtivista, as dificuldades de entendimento às vezes são graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes. Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de transformação.
Se o professor procura inovar sua prática, adotando um modelo de ensino que pressupõe a construção de conhecimento sem compreender suficientemente as questões que lhe dão sustentação, corre o risco, grave no meu modo de ver, de ficar se deslocando de um modelo que lhe é familiar para o outro, meio desconheci[1]do, sem muito domínio de sua própria prática – “mesclando”, como se costuma dizer. O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. O que, nessa visão “mesclada”, equivale a dizer que uns precisariam ser ensinados e outros não.
Em outros casos o modelo empirista fica intocado e as ideias que as crianças constroem em seu processo de aprendizagem são distorcidas, a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado. Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a psicogênese da língua escrita desvendou sobre o que pensam as crianças quando se alfabetizam, passaram a ensinar seus alunos a escrever silabicamente.
Que raciocínio leva a uma distorção desse tipo? Se os alunos têm de passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita alfabética, ensiná-los a escrever silabicamente faria chegar mais rápido à escrita alfabética, pensam esses professores. Essa perspectiva só pode caber em um modelo empirista de ensino, cuja lógica intrínseca é organizar etapas de apresentação do conhecimento aos alunos. Essa lógica não faz nenhum sentido em um modelo construtivista.
Outro tipo de entendimento distorcido, mais influenciado por práticas espontaneístas, é o seguinte: diante da informação de que quem constrói o conhecimento é o sujeito, houve professores que entenderam que a intervenção pedagógica seria, então, desnecessária. Se é o aluno quem vai construir o conhecimento, o que os professores teriam a fazer dentro da sala de aula? E passaram a não fazer nada. Como se vê, é fácil nos perdermos em nossa prática educativa quando não nos damos conta do que orienta de fato nossas ações. Ou melhor, de quais são as nossas teorias em ação.
CONTEÚDOS ESCOLARES SÃO OBJETOS DE CONHECIMENTO COMPLEXOS, QUE DEVEM SER DADOS A CONHECER, AOS ALUNOS, POR INTEIRO
A mudança na concepção dos conteúdos oferecidos pela escola provoca, de imediato, uma transformação enorme na oferta de informação aos alunos. Vamos continuar com o exemplo da língua escrita para tornar mais claro o que queremos dizer. Se o professor parte do princípio de que a língua escrita é complexa, dentro de uma concepção construtivista da aprendizagem ela deve ser – mesmo assim e por isso mesmo – oferecida inteira para os alunos. E de forma funcional, isto é, tal como é usada realmente.
Quando alguém aprende a escrever, está aprendendo ao mesmo tempo muitos outros conteúdos além do bê-á-bá, do sistema de escrita alfabética – por exemplo, as características discursivas da língua, ou seja, a forma que ela assume em diferentes gêneros através dos quais se realiza socialmente. Pensando assim, caberá ao professor criar situações que permitam aos alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada, o sistema alfabético.
Para alguém ser capaz de ler com autonomia é preciso compreender o sistema alfabético, mas isso apenas lhe confere autonomia. Qualquer um pode aprender muito sobre a língua escrita, mesmo sem poder ler e escrever autonomamente. Isso depende de oportunidades de ouvir a leitura de textos, participar de situações sociais nas quais os textos reais são utilizados, pensar sobre os usos, as características e o funcionamento da língua escrita.
Para os construtivistas – diferentemente dos empiristas, para quem a informação deveria ser oferecida da forma mais simples possível, uma de cada vez, para não confundir aquele que aprende – o aprendiz é um sujeito, protagonista do seu próprio processo de aprendizagem, alguém que vai produzir a transformação que converte informação em conhecimento próprio. Essa construção, pelo aprendiz, não se dá por si mesma e no vazio, mas a partir de situações nas quais ele possa agir sobre o que é objeto de seu conhecimento, pensar sobre ele, recebendo ajuda, sendo desafiado a refletir, interagindo com outras pessoas.
Quando se acredita que o motor da aprendizagem é o esforço do sujeito para dar sentido à informação que está disponível, tem-se uma situação bastante diferente daquela em que o aprendiz teria de permanecer tranquilo e com os sentidos abertos para introjetar a informação que lhe é oferecida, da maneira como é oferecida. Em um modelo empirista a informação é introjetada, ou não. Em um modelo construtivista o aprendiz tem de transformar a informação para poder assimilá-la. Concepções tão diferentes dão origem, necessariamente, a práticas pedagógicas muito diferentes.
AFIRMAR QUE O CONHECIMENTO PRÉVIO É BASE DA APRENDIZAGEM NÃO É DEFENDER PRÉ-REQUISITOS
Para aprender alguma coisa é preciso já saber alguma coisa – diz o modelo construtivista. Ninguém conseguirá aprender alguma coisa se não tiver como reconhecer aquilo como algo que se possa apreender. O conhecimento não é gerado do nada, é uma permanente transformação a partir do conhecimento que já existe. Essa afirmação – a de que o conhecimento prévio do aprendiz é a base de novas aprendizagens – não significa a crença ou defesa de pré-requisitos.
Tampouco esse tipo de conhecimento se confunde com a matéria ensinada anteriormente pelo professor. Se, por um lado, é o que cada um já possui de conhecimento que explica as diferentes formas e tempos de aprendizagem de determinados conteúdos que estão sendo tratados, por outro sabemos que a intervenção do professor é determinante nesse processo. Seja nas propostas de atividade, seja na forma como encoraja cada um de seus alunos a se lançar na ousadia de aprender, o professor atua o tempo inteiro.
NÃO INFORMAR NEM CORRIGIR SIGNIFICA ABANDONAR O ALUNO À PRÓPRIA SORTE
Como já vimos, diante de um corpo de ideias tão novo como a concepção construtivista da aprendizagem e o modelo de ensino através da resolução de problemas, o professor está também na posição de aprendiz. No entanto, o conhecimento pedagógico é produzido coletivamente, o que permite aos professores hoje aprender a partir do que outros já aprenderam, tomando cuidado com erros já cometidos por outros.
Um erro que precisa ser evitado por suas graves conseqüências é o desvio espontaneísta: como é o aluno quem constrói o conhecimento, não seria necessário ensinar-lhe. A partir dessa crença o professor passa a não informar, a não corrigir e a se satisfazer com o que o aluno faz “do seu jeito”. Essa visão implica abandonar o aluno à sua própria sorte. E é muito importante que o professor compreenda o que significa, do ponto de vista da criança, o “vou fazer do meu jeito”. Vamos usar a alfabetização novamente para exemplificar.
Quando uma criança entra na escola, ainda não-alfabetizada, tanto ela quanto o professor sabem que ela não sabe ler nem escrever. Ao propor que ela se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o professor na verdade está propondo é uma atividade baseada na capacidade infantil de jogar, de fazer de conta. Em um contrato desse tipo – que reza que o aluno deve escrever pondo em jogo tudo o que sabe e pensa sobre a escrita – o professor deve usar tudo o que sabe sobre as hipóteses que as crianças constroem sobre a escrita para poder, interpretando o que o aluno escreveu, ajudá-lo a avançar.
Dentro desse contrato, quem “faz de conta” é a criança. Nesse espaço em que a criança escreve “do seu jeito”, o papel do professor é delicado. Mas é semelhante ao de alguém adulto que participa de uma brincadeira de faz de conta sem entrar nela. Ao professor cabe organizar a situação de aprendizagem de forma a oferecer informação adequada. Sua função é observar a ação das crianças, acolher ou problematizar suas produções, intervindo sempre que achar que pode fazer a reflexão dos alunos sobre a escrita avançar. O professor funciona então como uma espécie de diretor de cena ou de contra-regra e cabe a ele montar o andaime para apoiar a construção do aprendiz.
COMO FAZER O CONHECIMENTO DO ALUNO AVANÇAR
O processo de aprendizagem não responde necessariamente ao processo de ensino, como tantos imaginam. Ou seja, não existe um processo único de “ensino-aprendizagem”, como muitas vezes se diz, mas dois processos distintos: o de aprendizagem, desenvolvido pelo aluno, e o de ensino, pelo professor. São dois processos que se comunicam, mas não se confundem: o sujeito do processo de ensino é o professor, enquanto o do processo de aprendizagem é o aluno.
É equivocada a expectativa de que o aluno poderá receber qualquer ensinamento que o professor lhe transmitir, exatamente como ele lhe transmite. O professor é que precisa compreender o caminho de aprendizagem que o aluno está percorrendo naquele momento e, em função disso, identificar as informações e as atividades que permitam a ele avançar do patamar de conhecimento que já conquistou para outro mais evoluído.
Ou seja, não é o processo de aprendizagem que deve se adaptar ao de ensino, mas o processo de ensino é que tem de se adaptar ao de aprendizagem. Ou melhor: o processo de ensino deve dialogar com o de aprendizagem. Nesse diálogo entre professor e aprendiz, cabe ao professor organizar situações de aprendizagem. Mas o que vem a ser isso? Elas consistem em atividades planejadas, propostas e dirigidas com a intenção de favorecer a ação do aprendiz sobre um determinado objeto de conhecimento, e esta ação está na origem de toda e qualquer aprendizagem.
Não basta, no entanto, que sejam planejadas, propostas e dirigidas para se constituírem automaticamente em boas situações de aprendizagem para os alunos. Para terem valor pedagógico, serem boas situações de aprendizagem, as atividades propostas devem reunir algumas condições, respeitar alguns princípios. Boas situações de aprendizagem costumam ser aquelas em que:
- os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo que se quer ensinar;
- os alunos têm problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem a produzir;
- a organização da tarefa pelo professor garante a máxima circulação de informação possível;
- o conteúdo trabalhado mantém suas características de objeto sociocultural real, sem transformar-se em objeto escolar vazio de significado social.
É certo que nem sempre é possível organizar as atividades escolares considerando simultaneamente esses quatro pressupostos pedagógicos. Isso é algo que depende muito do tipo de conteúdo a ser trabalhado e dos objetivos didáticos que orientam a atividade proposta. Mas os princípios acima apontam uma direção e é esta direção que convém não perder de vista.
ALUNOS PÕEM EM JOGO TUDO O QUE SABEM, TÊM PROBLEMAS A RESOLVER E DECISÕES A TOMAR
Juntos, os dois primeiros pressupostos formam o pano de fundo de uma proposta didática baseada na concepção da aprendizagem como construção. Nesse sentido, “pôr em jogo” o conhecimento que se tem não significa simplesmente usá-lo, mas arriscar-se: o aprendiz precisa testar suas hipóteses e enfrentar contradições, seja entre as próprias hipóteses, seja entre o que consegue produzir sozinho e a produção de seus pares, ou entre o que pode produzir e o resultado tido como convencionalmente correto.
Ao falar em “problemas a resolver”, não se está pensando em problemas matemáticos, nem em perguntas para as quais se devem encontrar respostas. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento só avança quando o aprendiz tem bons problemas sobre os quais pensar. É isso que justifica uma proposta de ensino baseada na ideia de que se aprende resolvendo problemas. Construir situações que se orientem por esses pressupostos exige do professor competência para estabelecer os desafios adequados para seus alunos, que são os que ficam na interseção entre o difícil e o possível.
Se a proposta é difícil demais e impossível de realizar, o desafio não se instaura para o aprendiz, pois o que está posto é um problema insolúvel no momento. Se a proposta é possível, mas fácil demais, não há nem sequer desafio colocado. Portanto, o desafio do professor é armar boas situações de aprendizagem para os alunos: atividades que representem possibilidades difíceis, mas coloquem dificuldades possíveis. Para que o aluno possa pôr em jogo o que sabe, a escola precisa autorizá-lo e incentivá-lo a acionar seus conhecimentos e experiências anteriores, fazendo uso deles nas atividades escolares.
Essa autorização não pode ser apenas verbalizada pelo professor: é importante que ele prepare as atividades de maneira que isso seja de fato requisitado. Certa vez, uma professora que iniciava um trabalho sobre os polos com seus alunos perguntou a eles o que sabiam sobre os pinguins. Foi um alvoroço, mas um menino que tinha se mudado para aquela escola naquele ano não falou nada. A professora então se dirigiu a ele e perguntou:
— João, você conhece pinguim?
— Sim.
— Então o que sabe sobre ele?
— Nada.
— Como, nada? Algo você deve saber: como ele é, em que tipo de lugar ele mora.
— É que a minha professora não deu pinguim no ano passado.
— Não tem importância, aqui ninguém ainda estudou isso na escola, mas a gente aprende muitas coisas fora da escola.
— Eu não, só o que eu sei é o que eu vi nos programas da TV Cultura e nos desenhos.
A valorização dos saberes construídos fora das situações escolares é condição para que os alunos tomem consciência do que e do quanto sabem. Esses, ou quaisquer conhecimentos que tenham, não são necessariamente conscientes, sistematizados ou corretos do ponto de vista adulto. Mas é certo que eles “estão em jogo” quando se aprende na escola, principalmente quando as propostas de ensino são planejadas para que assim seja.
Se, em uma situação de aprendizagem da multiplicação, por exemplo, o professor tem como objetivo que seus alunos façam uso dos saberes que possuem e que realizem operações de forma mais econômica, deve propor atividades em que essas operações vão se tornando mais complexas, levando-os, de fato, a pôr em uso o que sabem, ao mesmo tempo em que observam outras formas de resolução que não as próprias.
O professor pode agrupar os alunos em duplas para participar de um jogo como o descrito a seguir, de maneira que fiquem juntos um aluno que realiza a operação utilizando procedimentos mais econômicos e outro que não o faz. Jogos que colocam em questão a agilidade na resolução dos cálculos requerem, dos que usam estratégias pouco avançadas, um esforço para aprender outras mais rápidas, que permitam ganhar tempo.
Um dos aspectos interessantes desse jogo é que o parceiro que propõe o desafio tem sempre que saber o resultado, porque se não souber e tiver que conferir o outro vai ver, já que estão um de frente para o outro. Geralmente, as crianças começam propondo cálculos com números baixos: duas caixinhas com 3 palitos cada uma, 3 caixinhas com 2 palitos cada. À medida que vão se soltando, propõem coisas cada vez mais complexas. Adoram 9 vezes 9 ou 8 vezes 8.
Uma das descobertas que fazem é que, assim como os dobros, os “quadrados” têm que ser memorizados, para facilitar. E começam a construir estratégias de multiplicação: 9 caixinhas com 9 palitos é o mesmo que 10 caixinhas com 9 palitos, menos 9 palitos; 8 caixinhas com 9 é igual a 81 (que já sabe de cor), menos 9. Dessa forma, as crianças vão compreendendo as propriedades da multiplicação e, consequentemente, ampliando seus conhecimentos matemáticos. No entanto, tratar-se de um jogo não garante, em si, que a situação de aprendizagem seja interessante: existem jogos extremamente enfadonhos, outros que não desafiam, por serem muito fáceis ou muito difíceis.
A vantagem que um jogo do tipo acima apresenta para quem está aprendendo multiplicação é o fato de configurar uma situação em que a agilidade no uso do tempo de resolução é um fator importante: o jogo fica mais interessante se as estratégias forem rápidas. Isso vai fazendo com que a tabuada seja aprendida de forma inteligente. A limitação do tempo – que é sempre uma variável em qualquer atividade humana – é importante na construção de estratégias aritméticas mais avançadas.
Quando se restringe o tempo, as estratégias têm de se tornar mais econômicas e isso, por sua vez, exige um aprofundamento em relação à natureza da operação que está sendo realizada e às suas propriedades. Em qualquer área de conhecimento é possível organizar atividades que representem problemas para os alunos e que demandem o uso do que sabem para encontrar soluções possíveis. Voltando aos princípios: quando dizemos que os alunos devem ter problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem a produzir, estamos nos referindo a uma questão de natureza ideológica, que tem enormes consequências de natureza pedagógica (e vice-versa).
Não adianta lamentar que a maioria dos alunos tenha como único objetivo em sua vida escolar tirar boas notas e passar de ano, pois é a escola quem lhes ensina isso. Ensina em atos, quando propõe tarefas cujo sentido escapa à criança e, frequentemente, ao próprio professor. É fundamental que os professores que têm compromisso político compreendam que é a alienação que educa para a alienação. Quando falo de tarefas cujo sentido escapa à criança, não estou me referindo a tarefas chatas, cansativas, e não estou propondo que se transforme a escola em um parque de diversões.
Aprender envolve esforço, investimento, e é justamente por isso que em cada atividade os alunos devem ter objetivos imediatos de realização para os quais dirigir o esforço de equacionar problemas e tomar decisões. Esses objetivos não precisam emergir do seu interesse, nem devem ser decididos por eles. Propostos pelo professor, constituem-se em parte da própria estrutura da atividade, de tal forma que os alunos possam se apropriar tanto dos objetivos quanto do produto do seu trabalho. Vou dar um exemplo. A produção de texto, ou, como é mais conhecida, a redação, é uma atividade presente em qualquer tipo de proposta pedagógica. O que varia é o momento em que se considera a criança apta a redigir textos.
A discussão sobre se é necessário escrever convencionalmente ou não para começar a produzir textos envolve questões tanto do campo da linguística (o que é um texto) quanto do campo da pedagogia (é necessário aprender para poder redigir, ou é necessário redigir para poder aprender?). Mas nossa questão nesse momento não é essa e sim o sentido do ato de redigir para o aluno.
Creio que ninguém discordaria que escrever para ser lido é completamente diferente de escrever para ser corrigido. São dois sentidos distintos que tornam o que aparentemente é a mesma atividade, a redação, em duas atividades completamente diferentes. A própria correção, como uma outra atividade, ganha sentido quando é tratada como um esforço de buscar maior legibilidade e permite ao aluno compreender que é necessário escrever dentro de padrões convencionais, não para agradar ao professor, e sim para poder ser lido com facilidade.
A ORGANIZAÇÃO DA TAREFA GARANTE A MÁXIMA CIRCULAÇÃO DE INFORMAÇÃO POSSÍVEL
Informação é tudo o que de fato “acrescenta”. Livros e outros materiais escritos informam, a intervenção do professor informa, a observação de como um colega resolve uma situação-problema informa, as dúvidas informam, as dificuldades informam, o próprio objeto com o qual os alunos se debatem para aprender informa. O conhecimento avança quando o aprendiz enfrenta questões sobre as quais ainda não havia parado para pensar. Quando observa como os outros a resolvem e tenta entender a solução que os outros dão.
Isso é o que justifica a exigência pedagógica de garantir a máxima circulação de informação possível na classe. Significa permitir que as perguntas circulem e as respostas também, e que cada aluno faça com isso – que é informação – o que lhe é possível em cada momento. Para promover a circulação de informações, é preciso que o professor aceite que seu papel é o de um planejador de intervenções que favoreçam a ação do aprendiz sobre o que é objeto de seu conhecimento.
E que abra mão da posição de ser o único informante da classe – posição muitas vezes adotada não por autoritarismo, mas para evitar que os alunos errem, pois, quando trocam livremente informações, expõem uns para os outros, suas hipóteses, muitas vezes erradas. A preocupação em evitar o contato do aluno com a resposta errada é uma marca do modelo empirista de ensino e está relacionada à ideia de que ela vai se fixar em sua memória. As crianças frequentemente reproduzem o padrão de comportamento que os adultos têm com elas.
Em uma classe onde o respeito intelectual com o processo de aprendizagem dos alunos é baixo, é comum estes se vangloriarem dos seus saberes, gozarem e humilharem os outros quando dão respostas inadequadas. Em uma classe onde o professor cultiva a cooperação e o respeito intelectual, os alunos costumam fazer o mesmo com os colegas. Quando o professor proporciona situações de intercâmbio e colaboração na sala de aula, eles podem trocar informações entre si, discutir de maneira produtiva e solidária e aprender uns com os outros.
Para poder explicar para o colega que seu jeito de pensar está incorreto, o aluno precisa formular com precisão e argumentar com clareza – e esta é uma situação muito rica para sistematizar seus próprios conhecimentos. Quando se contradiz e percebe isso, pode reorganizar suas ideias e, dessa forma, seu conhecimento avança. Em um ambiente de respeito e solidariedade os alunos aprendem a dar as informações que julgam importantes para o colega. Em uma sala de aula onde essa prática é adotada, não é raro vê-los oferecendo informações parciais uns para os outros e escutar diálogos do tipo: “Agora pensa, para ver se você descobre”, “Repare bem, que você encontra a resposta”.
É comum, também, ver uma criança perguntando coisas do tipo “Com que letra começa padaria?” e tendo como resposta “É com a mesma letra do nome do Paulo” – uma resposta bastante diferente de: “Dá aqui que eu faço um ‘p’ para você”, ou “Não está vendo que é o ‘p’?”. E há, é claro, a possibilidade de o aluno que perguntou ouvir de seu colega: “Padaria? Começa com ‘a’ ”– e se dar por satisfeito. O medo de que eles aprendam errado, em uma hora dessas, faz com que muitos professores recuem e bloqueiem a circulação de informação. Uma classe é, de certa forma, uma microssociedade.
E o professor estabelece o seu modo de funcionamento, muito menos por ter montado um decálogo na parede – o que é muito interessante, desde que seja discutido com os alunos – mas, principalmente, por passar, através de seus próprios atos, quais as atitudes que devem ser valorizadas, quais não, que formas de relação são bem aceitas, quais não. A classe incorpora isso tudo porque o professor está no comando e é referência. Os alunos muitas vezes discutem, defendem suas opiniões. E a atitude diante do que consideram um não saber do outro tem muito a ver, também, com o temperamento de cada um.
Há crianças que não discutem, mas não arredam pé; outras até discutem, mas acabam cedendo. A questão central não é haver ou não discussão, mas sim que cada um consiga formular o seu argumento a favor ou contra uma dada questão. Aprende-se muito quando se está exposto a uma argumentação e aprende-se mais ainda quando se tem que defender um ponto de vista. O esforço de comunicar uma ideia sempre faz avançar a compreensão e é altamente produtivo do ponto de vista da aprendizagem. A interação entre os alunos não é necessária só porque o intercâmbio é condição para o convívio social na escola: a interação entre os alunos é necessária porque informa a todos os envolvidos e potencializa quase infinitamente a aprendizagem.
O CONTEÚDO TRABALHADO DEVE MANTER SUAS CARACTERÍSTICAS DE OBJETO SOCIOCULTURAL REAL
Ao longo deste século, foram sendo criadas práticas que se instalaram tão fortemente no senso comum, a ponto de imaginarmos que sempre existiram, que tudo sempre foi assim. A ideia de que para aprender na escola era necessário que os materiais fossem produzidos especialmente para esse uso escolar criou uma espécie de muro, que não deixava entrar na escola nada que fosse do mundo externo. No livro Psicanálise da alfabetização, Bruno Bethelheim mostra, por exemplo, como aconteceu uma involução dos textos, através dos anos, para ensinar a ler em inglês. Em nome de facilitar a aprendizagem, inventaram-se escritos que apresentam a leitura como uma atividade esvaziada de qualquer sentido.
No Brasil, esses escritos também se constituíram em uma marca registrada, principalmente da escolaridade inicial. Isso não quer dizer que a descaracterização dos conteúdos seja privilégio das primeiras séries. Mais adiante pode-se encontrar uma outra invenção da escola: a redação escolar, um gênero que não existe em nenhum outro lugar além da escola. Trata-se, em geral, de um texto sem destinatário, que nunca será lido de fato, a não ser pelo professor, com o objetivo exclusivo de corrigi-lo.
E não é apenas o ensino da língua portuguesa que está cheio de criações escolares, que em nada coincidem com as práticas sociais de uso da língua, objeto de ensino na escola. As demais áreas também possuem suas invenções específicas, todas elas. Quando um aluno, como os que eu tinha em 1962, trabalha como vendedor na rua e não consegue resolver problemas matemáticos simples na escola, é de se pensar o que foi feito do ensino da matemática que a torna algo tão pouco familiar. Claro que a questão que se coloca para os alunos que vão bem nas contas “de rua” é diferente: na escola aprende-se a linguagem matemática escrita, que é pouco usada na rua. Mas não se pode deixar de lado esta competência que o aluno já traz desenvolvida e sobrepor a escolarização a ela.
Toda ciência ou prática social, quando se converte em objeto de ensino escolar, acaba, inevitavelmente, sofrendo modificações. A arte é diferente da Educação Artística, o esporte é diferente da Educação Física, a linguagem é diferente do ensino de Língua Portuguesa, a ciência é diferente do ensino de Ciências e assim por diante. Mas é preciso cuidado para não produzir invenções pretensamente facilitadoras, que acabam tendo existência própria. Cabe à escola garantir a aproximação máxima entre o uso social do conhecimento e a forma de tratá-lo didaticamente.
Pois se o que se pretende é que os alunos estabeleçam relações entre o que aprendem e o que vivem, não se pode, com o intuito de facilitar a aprendizagem, introduzir dificuldades. Nesse sentido, o papel da escola é criar pontes, e não abismos. No momento em que compreendemos que não é preciso simplificar tudo que se oferece aos alunos, que eles podem enfrentar objetos de conhecimento complexos – desde que o professor respeite e apoie a forma pela qual vão penetrando nessa complexidade –, também passamos a abrir a escola para o mundo e fazer dela um ponto de partida para a aventura do conhecimento. Nunca o ponto de chegada.
REFERÊNCIAS:
Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.