Eliminativismo e psicologia popular

Eliminativismo e psicologia popularRamsey et al. (1991, p.94) afirmam que “eliminativismo” é um nome chique para uma tese simples, segundo a qual “algumas categorias de entidades, processos ou propriedades exploradas por uma concepção de senso comum ou científica do mundo não existem”. No contexto da filosofia da mente, os eliminativistas simplesmente eliminam a mente, ou, mais especificamente, a psicologia popular, uma teoria de senso comum que foi desenvolvida para tratar das causas do comportamento e para fornecer respostas sobre a natureza da mente humana (Churchland, 1981, 1988/2004, 1989; Churchland, 1986; Feyerabend, 1963; Rorty, 1965, 1970).

Mas para entender a tese eliminativista é preciso falar um pouco mais sobre as teorias centralistas. A agenda de pesquisa empírica sustentada tanto pela teoria da identidade quanto pelo funcionalismo causal de localizar, uma a uma, as relações de identidade entre estados mentais e estados físicos, encontra sua contraparte filosófica no reducionismo, e é mediante a apresentação do reducionismo que entenderemos o ponto de vista eliminativista.

A redução é uma relação entre duas teorias científicas, uma teoria secundária (TS), que é a teoria a ser reduzida, e uma teoria primária (TP), que é a teoria à qual a outra será reduzida (Nagel, 1961).

Há duas condições essenciais para que ocorra o processo de redução. A primeira delas é a condição de derivação, segundo a qual a redução implica uma derivação lógico‑dedutiva da TS a partir da TP. A segunda condição, por sua vez, é denominada condição de conectabilidade. A ideia básica é que todos os termos, conceitos e leis presentes no vocabulário da TS devem possuir correlatos na TP. Para Nagel (1979/2008), essas condições são essenciais, pois o processo de redução é formado por uma série de afirmações teórico‑ ‑científicas, uma delas sendo a conclusão e as outras as premissas que a sustentam.

Agora, se as afirmações teórico‑científicas da TS contiverem termos que não possuem correlatos na TP, o processo de redução se torna impossível. De acordo com Nagel (1961), isso ocorre porque, no processo de derivação lógico‑dedutiva, nenhum termo pode aparecer na conclusão a menos que também apareça nas premissas.

Além dessas características, a redução da TS para a TP pode ser vista como de natureza (1) lógica, em que a TS e a TP estão ligadas apenas por algum vínculo formal; (2) convencional, em que a redução é vista como uma estratégia criada deliberadamente pelos cientistas como uma norma a ser seguida; e (3) factual ou material, em que a redução consiste em hipóteses empíricas.

Isto é, se uma expressão ou termo de uma TS que denota um estado de coisas do mundo for reduzido a uma expressão ou um termo de uma TP que denota um estado de coisas do mundo, então o próprio estado de coisas denotado pela TS será reduzido para o estado de coisas de‑ notado pela TP. No contexto da teoria da identidade e do funcionalismo causal, a redução é de natureza material, já que essas teorias pretendem ser, acima de tudo, alternativas monistas fisicalistas ao dualismo cartesiano.

Afinal, qual seria o propósito de localizar as relações de identidade senão o de provar que estados mentais são nada mais que estados físicos? Em poucas palavras, busca‑se reduzir a mente cartesiana imaterial à mente cerebral material. Entretanto, contestar a possibilidade do projeto reducionista pode levar pelo menos a dois caminhos. O primeiro seria a reafirmação do dualismo cartesiano: não é possível reduzir os estados mentais aos estados físicos porque eles possuem natureza distinta.

O segundo caminho, por sua vez, é o percorrido pelo eliminativismo: não é possível reduzir estados mentais aos estados físicos porque os conceitos mentais da psicologia popular não condizem com a realidade da cognição humana (Churchland, 1988/2004). Assim, o eliminativismo pode ser definido como a tese segundo a qual:

A nossa concepção popular dos fenômenos psicológicos constitui uma teoria radicalmente falsa, uma teoria radicalmente tão deficiente que tanto os seus princípios quanto a sua ontologia irão ser finalmente substituídos, em vez de suavemente reduzidos, por uma neurociência completa. (Churchland, 1981, p.67)

As teorias centralistas, desde o princípio, herdaram a linguagem mentalista cartesiana. Fala‑se de estados mentais como “crenças”, “desejos”, “intenções”, “sensações” e “imagens mentais”, e a partir desse vocabulário buscam‑se as relações de identidade entre os conceitos mentais e os conceitos físicos, especialmente os das neurociências.

O eliminativismo sustenta que esse projeto é inviável porque a psicologia popular apresenta uma teoria da mente completamente errada e por isso as condições de satisfação do reducionismo (derivação e conectabilidade) não seriam contempladas. O ponto de partida do eliminativismo, portanto, é a sustentação de que os conceitos mentais constituem uma teoria denominada psicologia popular (Churchland, 1981; Churchland, 1986; Stich & Ravenscroft, 1994).

Esse ponto é crucial tanto porque o projeto reducionista implica uma redução interteórica quanto porque, a partir do momento em que se atribui tal status aos conceitos mentais, é possível colocá‑los à prova. Isto é, não estamos mais falando de uma mente cartesiana irrefutável, da qual não podemos duvidar porque a própria dúvida seria a prova de sua existência. Mas o que caracterizaria, então, a psicologia popular? Nas palavras de Churchland (1989, p.225):

A psicologia popular […] é um sistema de conceitos, grosseiramente adequado às demandas do dia a dia, a partir do qual o modesto adepto compreende, explica, prediz e manipula um certo campo de fenômeno. Ela é, brevemente, uma teoria popular. Como qualquer teoria, ela pode ser avaliada por suas virtudes ou vícios em todas as dimensões listadas. E como qualquer teoria, se for insuficiente para dar conta de toda a extensão da avaliação, ela pode ser rejeitada em sua totalidade.

Entre as funções da psicologia popular, de acordo com Stich & Ravenscroft (1994), estaria descrever a nós mesmos e aos outros. Dizemos, por exemplo, que somos “amáveis”, “indecisos” e “crentes”. Além do propósito descritivo, a psicologia popular fornece um arcabouço conceitual a partir do qual seria possível explicar o comportamento.

Dizemos que uma pessoa bebeu água porque estava com “sede” ou que ela foi à missa porque “crê” em Deus ou que ela discutiu com alguém porque estava “brava”. Outra função da psicologia popular seria a previsão do comportamento. Continuando com os mesmos exemplos, levando‑se em conta o fato de que a pessoa “crê” em Deus, é provável que ela vá à missa; já que a pessoa está com “sede” é provável que ela beba água; e por estar “brava” é possível que ela discuta com alguém.

Partindo da premissa de que a psicologia popular é uma teoria sobre a cognição e o comportamento, o próximo passo do eliminativista é negar a sua validade. Churchland (1981, 1988/2004) fornece ao menos três razões que dão suporte ao eliminativismo. A primeira está na obscuridade da psicologia popular: seus conceitos e suas explicações trazem mais indagações do que respostas.

O presente capítulo seria um exemplo claro desse fato: qual a natureza da mente? Como o mental se relaciona com o físico? Como conhecemos a mente? Afinal, o que é a mente? A consequência imediata da eliminação da psicologia popular seria o desaparecimento dessas questões, já que com os conceitos eliminamos, também, a ontologia da mente. A segunda razão, por sua vez, é fruto de uma “lição indutiva da história dos conceitos” (Churchland, 1988/2004, p.84).

Na história da filosofia e da ciência há casos de conceitos que possuíam um papel explicativo sobre um fenômeno, mas que acabaram por ser descartados em troca de outros que cumpriam melhor a função. Acreditava‑se, por exemplo, que quando alguma coisa queimava havia a liberação de uma substância volátil denominada “flogisto”. Era o flogisto que mantinha o fogo aceso e, assim que toda a substância era liberada, o fogo se apagava.

Mais tarde, porém, notou‑se que o processo de combustão não implicava a perda, mas sim o consumo de uma substância: o oxigênio. A teoria do flogisto se mostrou radicalmente errada: não era possível nem mesmo reduzi‑la à nova teoria, o que resultou em sua eliminação. Outro exemplo, mais próximo da psicologia, está nas histórias de possessões demoníacas. Antigamente, pessoas com distúrbios psicológicos, como psicoses, eram acusadas de estarem possuídas pelo demônio ou de serem bruxas.

A possessão era a causa das suas condições. No entanto, embora não se saiba exatamente quais são as causas de diversas condições psicológicas, hoje em dia elas não são atribuídas às possessões. Esse é um exemplo interessante, pois, mesmo sendo uma ciência incompleta, a psicologia já é capaz de eliminar teorias provavelmente incorretas. Finalmente, a terceira razão está no fato de que o reducionismo é um projeto bastante exigente.

Basta analisar os problemas enfrentados pelas teorias centralistas listados na subseção 1.1.3 e as condições de satisfação da redução interteórica para constatar que há grandes chances de que esse projeto dê errado. Porém, uma neurociência que abandone o projeto reducionista está livre da psicologia popular.

O que está em questão não é a capacidade para descrever, explicar e prever o comportamento humano e, assim, apresentar uma teoria da natureza da mente por meio da neurociência reducionista ou por meio da neurociência eliminativista. Esse é um problema em aberto, que depende exclusivamente do desenvolvimento das neurociências.

A questão é que, além de ter que lidar com as chances de sucesso ou fracasso das neurociências, o projeto reducionista ainda teria que tratar dos problemas da redução interteórica. Aos eliminativistas, por sua vez, só restaria esperar pelos avanços das neurociências.

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REFERÊNCIAS:

A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.