O eliminativismo traz consigo dois temas relevantes e que merecem a atenção do behaviorismo radical: a pertinência da psicologia popular e o reducionismo. Esses temas, por sua vez, podem ser transpostos em duas questões. Como o behaviorismo radical lida com a psicologia popular? Seria o behaviorismo radical uma teoria partidária do projeto reducionista ou, pelo contrário, defenderia o behaviorismo radical algum tipo de irredutibilidade do comportamento? O objetivo desta seção é sugerir respostas possíveis a essas questões. Sobre a linguagem vernacular mentalista, Skinner (1938/1966a, p.7) apresentou a seguinte afirmação:
A [linguagem] vernacular é grosseira e obesa; seus termos se sobrepõem, atraem distinções desnecessárias ou irreais e estão longe de ser os mais convenientes no tratamento dos dados. Eles têm a desvantagem de ser produtos históricos, introduzidos por causa da conveniência do dia a dia em vez da conveniência especial característica de um sistema científico simples. Seria um milagre se tal conjunto de termos fosse válido numa ciência do comportamento, e nesse caso nenhum milagre ocorreu. Há apenas um modo de obter um sistema conveniente e útil e esse modo é ir direto aos dados.
Claramente, o que Skinner afirma ser a linguagem vernacular é o que os eliminativistas definem como psicologia popular (sub‑ seção 1.1.4): um sistema conceitual, ou uma teoria, cuja função é descrever, prever e explicar a cognição e o comportamento humano. E mais, o posicionamento de Skinner em relação à linguagem vernacular mentalista é semelhante ao do eliminativismo em relação à psicologia popular: é um produto histórico, inacurado e grosseiro que foi desenvolvido sem as condições de controle que uma metodologia científica poderia oferecer.
Em outro texto Skinner (1979, p.117) é mais incisivo e afirma que os termos da psicologia popular seriam “construtos verbais, armadilhas gramaticais nas quais a raça humana caiu durante o desenvolvimento da linguagem”. Mas qual o critério que fundamenta as críticas de Skinner à psicologia popular? Para Skinner (1938/1966a), não haveria nenhuma diferença conceitual entre os termos da psicologia popular e os termos da teoria do comportamento behaviorista radical: “um conceito é apenas um conceito.
Que seja ou não fictício ou objetável não pode ser determinado meramente a partir de sua natureza conceitual” (Skinner, 1938/1966a, p.440). Assim, a vali‑ dação de um sistema teórico não deve se dar apenas por meio de uma análise conceitual. De acordo com Skinner (1938/1966a, p.7), “o único critério para a rejeição de um termo popular é a implicação de um sistema ou de uma formulação estendida para além das observações imediatas”. Esse ponto nos remete à forma como Skinner caracteriza a gênese dos termos apropriados na construção de uma teoria do comportamento (Skinner, 1938/1966a, 1947/1961b).
O vocabulário de termos teóricos deve originar‑se da observação do fenômeno e suas definições devem ser fundamentadas a partir das relações funcionais entre as respostas verbais do cientista (os “termos” ou “conceitos” que ele usa) e as condições que estabelecem a ocasião em que elas ocorrem (seção 2.2). Dessa forma constituem‑se os principais conceitos da teoria do comportamento behaviorista radical. O repertório verbal do cientista do comporta‑ mento, nesse caso, estaria sob controle dos eventos do laboratório. Suas respostas verbais ocorreriam em função das condições estabelecidas pelo contexto experimental.
Em suma, o cientista não iria para além do nível de análise comportamental (seção 2.2). A psicologia popular, por outro lado, apresenta conceitos que não possuem esse tipo de controle. As condições que controlam o repertório verbal de uma pessoa que pretende explicar o comportamento valendo‑se de termos mentalistas, como “intenção”, “desejo” e “propósito”, não estão no fenômeno a ser explicado, e sim em outro lugar, isto é, em outras contingências arbitrárias frutos de convenções estabelecidas pela comunidade verbal.
É importante ressaltar que os termos da teoria do comporta‑ mento proposta pelo behaviorismo radical também decorrem de contingências arbitrárias frutos de convenções estabelecidas pela comunidade verbal, mas, ao contrário do que ocorre com a psicologia popular, são contingências estabelecidas por uma parte bem específica da comunidade verbal: a comunidade verbal científica. E para essa comunidade, pelo menos no que concerne à filosofia da ciência proposta por Skinner, as condições que controlam o repertório verbal dos cientistas não devem ultrapassar os limites do ambiente experimental nem o nível de análise comportamental.
Esse é o ponto fundamental que distingue a psicologia popular da teoria behaviorista radical do comportamento. Não é relevante avaliar conceitualmente os termos e conceitos dessas teorias. O que está em questão não é a natureza conceitual, mas sim as condições de controle dos repertórios verbais que constituem a psicologia popular e a teoria do comportamento behaviorista radical, em que apenas a segunda tem sua gênese e manutenção auxiliada pela prática científica.
Desse modo, seguindo a própria definição de Skinner (1950/1961a), segundo a qual uma má teoria seria aquela que tece explicações sobre um fenômeno a partir de eventos que ocorrem em outro nível de observação, descritos em termos diferentes e medidos em diferentes dimensões, pode‑se afirmar, então, que a psicologia popular é uma má teoria que fornece más explicações. É pertinente salientar, porém, que do abandono da psicologia popular não se segue necessariamente o abandono de vocábulos normalmente utilizados por ela.
Como vimos no capítulo 3, é possível apresentar uma interpretação comportamental, por meio de conceitos que cumprem as exigências de Skinner sobre as características da boa teoria científica, de diversos fenômenos normal‑ mente caracterizados como “mentais”. Não há, no entanto, nada de errado em utilizar vocábulos como “consciência”, “pensamento”, “percepção”, “sensação”, “experiência”, “subjetividade”, etc., para classificar certos tipos ou certas características das relações comportamentais.
São as condições de controle sobre esse repertório verbal que nos mostram a sua validade. Em síntese, o problema não está propriamente nos vocábulos, mas nos significados – isto é, nas condições de controle das respostas verbais – a eles atribuídos. Em tempo, o eliminativismo é caracterizado por dois movi‑ mentos. O primeiro deles é a eliminação da psicologia popular enquanto teoria válida na explicação da cognição e do comportamento. É possível supor que há consonância entre eliminativismo e behaviorismo radical nesse ponto.
O segundo passo, por sua vez, é atestar que as neurociências irão preencher a lacuna deixada pela eliminação da psicologia popular. Há um detalhe do eliminativismo que merece ser trazido à luz: uma das principais razões para se eliminar a psicologia popular é que, por ser uma teoria errada, seus termos ou conceitos nunca serão passíveis de redução aos termos e conceitos das neurociências. Ou seja, num sentido amplo, o projeto reducionista não foi descartado pelo eliminativismo. Só foi negada a possibilidade de redução da psicologia popular.
Se uma teoria “correta” tomar o lugar da psicologia popular, então essa teoria poderá, em princípio, ser passível de redução e o eliminativismo não nega essa possibilidade. Nas palavras de Churchland (1981, p.75): “Uma redução bem-sucedida, a meu ver, não pode ser descartada, mas a impotência explanatória e a longa estagnação da psicologia popular inspiram pouca fé de que suas categorias encontrar‑se‑ão ordenadamente refletidas no arcabouço da neurociência”. Sintetizando o argumento eliminativista: o que não for passível de redução é preciso eliminar; e é justamente isso o que ocorreria com a psicologia popular.
Esse detalhe do eliminativismo coloca o behaviorismo radical numa situação interessante. Tal como o eliminativismo, o behaviorismo radical é cético em relação à validade da psicologia popular, eliminando‑a, portanto, das explicações do comportamento. Entretanto, a teoria que substitui a psicologia popular não é funda‑ mentada pelas neurociências, mas sim pela análise experimental do comportamento. É evidente que para o behaviorista radical a sua própria teoria do comportamento é a teoria “correta” que preencheu a lacuna deixada pela eliminação da psicologia popular.
Seria um disparate pensar que os behavioristas radicais não acreditam que a teoria que defendem seja a correta. Nesse contexto surge a seguinte questão: seria a teoria do comportamento proposta pelo behaviorismo radical redutível às neurociências? Se a resposta for positiva, então o behaviorismo radical pode ser visto como plena‑ mente compatível com o eliminativismo.
Se, por outro lado, a resposta for negativa, então a semelhança entre behaviorismo radical e eliminativismo não vai além da crítica à psicologia popular. Na busca de dados que indiquem uma possível resposta a essas questões, o melhor caminho a seguir é pela análise do papel da fisiologia nas explicações do comportamento. Especialmente no início de sua carreira, Skinner se mostrou adepto do reducionismo:
“Eventualmente, uma síntese das leis do comportamento e do sistema nervoso poderá ser alcançada” (Skinner, 1938/1966a, p.428); “Nós podemos assumir que, eventualmente, os fatos e princípios da psicologia serão redutíveis não apenas à fisiologia, mas, por intermédio da bioquímica e química, até a física e física subatômica” (Skinner, 1947/1961b, p.231). Entretanto, com o desenvolvimento da teoria do comportamento behaviorista radical, a redução se tornou um tema cada vez mais ausente na obra de Skinner.
Isso por‑ que, ao mesmo tempo em que não descartava a possibilidade de redução, Skinner (1931/1961c, 1938/1966a, 1961f, 1979, 1980/1998) também sustentava que o comportamento deveria ser estudado pelos seus próprios termos e em seu próprio nível de análise, e que a própria possibilidade de redução não era algo essencial para a validação do behaviorismo radical (Skinner, 1938/1966a, 1947/1961b, 1961f). O seguinte trecho apresenta de maneira bastante clara o posicionamento do autor (1961f, p.326):
[…] devemos deixar claro que o comportamento é um objeto de estudo em si mesmo, e que ele pode ser estudado com métodos aceitáveis sem um olho na explicação redutiva. As respostas de um organismo num certo ambiente são eventos físicos. […] O comportamento não é simplesmente o resultado de atividades mais fundamentais para as quais nossas pesquisas, por esse motivo, devem se destinar, mas um fim em si mesmo, cuja importância e solidez são demonstradas nos resultados práticos da análise experimental.
De acordo com Skinner (1980/1998), o behaviorismo radical foi uma declaração de independência da pesquisa do comportamento em relação às pesquisas fisiológicas. Da independência, porém, não se segue a incompatibilidade. Skinner (1980/1998) não se via como rival da fisiologia. Pelo contrário, a fisiologia e a análise do comportamento seriam como duas faces de uma mesma moeda, ou seja, seriam complementares. Especificamente, à fisiologia estaria reservado o papel de preencher as lacunas deixadas pela análise comportamental (Skinner, 1972b, 1974, 1975, 1987b, 1988, 1989a, 1989d).
Para Skinner (1988, p.470) haveria duas lacunas: “a lacuna espacial entre o comportamento e as variáveis das quais ele é função e a lacuna temporal entre as ações executadas sobre o organismo e as modificações, muitas vezes demoradas, de seu comportamento”. Ao que parece, a fisiologia deveria preencher as lacunas entre estímulos, respostas e consequências. Como vimos na seção dedicada à intencionalidade (seção 3.2), por exemplo, uma das principais características do comportamento operante é a ausência de estímulos eliciadores das respostas.
Há estímulos discriminativos que estabelecem a ocasião em que a probabilidade de emissão de uma resposta pertencente a uma classe operante pode ou não aumentar. A ausência de uma relação mais conspícua entre estímulo e resposta gera a ilusão de que o comportamento ocorreria em função de eventos mentais intermediários (Skinner, 1974, 1977). Nesse caso, haveria uma cadeia causal de três elos: estímulo → evento mental intermediário → resposta. Essa é exatamente a cadeia causal sustentada pelo funcionalismo causal (subseção 1.1.3). Skinner (1954, 1963a) é contra esse tipo de explicação: não há eventos mentais intermediários.
Por outro lado, Skinner (1953/1965) parece ser adepto de um outro tipo de cadeia causal de três elos: estímulo → eventos fisiológicos intermediários → resposta. Os eventos fisiológicos intermediários preencheriam as lacunas espaciais e temporais da análise do comportamento. Um estímulo afeta um organismo modificando a sua constituição fisiológica. O organismo modificado, por sua vez, emite a resposta. Esse modelo, embora amparado pela fisiologia e não por uma entidade mental, ainda é bastante próximo do funcionalismo causal.
Lembremo‑nos de que a tese central dessa teoria seria a de que os eventos mentais intermediários não passariam de eventos neurofisiológicos intermediários (subseção 1.1.3). Na verdade, Skinner (1956/1961j, p.214) chegou até mesmo a utilizar os termos input para estímulo e output para resposta: “A tarefa da fisiologia é explicar as relações causais entre input e output que são de especial interesse para uma análise do comportamento”. Os estímulos seriam eventos públicos responsáveis pela modificação dos eventos fisiológicos intermediários e as respostas seriam ações manifestas causadas pelos eventos fisiológicos intermediários.
É preciso ter muito cuidado com essas afirmações de Skinner, pois elas sugerem uma definição de comportamento fundamental‑ mente diferente da apresentada nos próprios textos do autor (seção 2.1). É errado colocar uma análise fisiológica no mesmo nível que uma análise comportamental. As lacunas espaciais e temporais só existem sob os olhos do cientista que observa o comportamento. O comportamento é um processo de fluxo contínuo e não há lacunas quando há fluxo contínuo. As lacunas surgem quando os cientistas do comportamento “quebram” o fluxo.
Aliás, como vimos na seção 2.1, o fluxo não é observável, mas é condição pressuposta para a própria definição de comportamento. Sendo assim, sempre existirão “lacunas” na análise do comportamento, mas não no comportamento. Dessa forma, para preencher as lacunas, os cientistas do comportamento devem buscar explicações em outro nível de aná‑ lise em vez de localizar elos intermediários entre estímulos, res‑ postas e consequências. A seguinte citação de Skinner (1969d, p.60) esclarece esse ponto:
Em uma explicação mais avançada do comportamento do organismo, variáveis “históricas” serão substituídas por variáveis “causais”. Quando pudermos observar o estado momentâneo de um organismo, nós deveremos ser capazes de usá‑lo, como alternativa à história responsável por ele, na predição do comportamento. Quando pudermos gerar ou modificar um estado diretamente, nós deveremos ser capazes de fazê‑lo para controlar o comportamento.
A análise do comportamento é “necessariamente histórica” (Skinner, 1974, p.215). A fisiologia preencherá as lacunas da análise histórica. Pode‑se perguntar, por exemplo, onde está a tão falada “história de reforçamento” pela qual um organismo passou ao longo de sua vida e na qual se encontram as explicações para o seu repertório comportamental presente. Ora, a história não está em lugar algum. Não é possível localizá‑la e nem mesmo apontar para algo e dizer “aqui está a história de reforçamento”.
Um organismo que passou por uma história de reforçamento é um organismo fisiologicamente modificado. Seriam as modificações fisiológicas que responderiam como os efeitos de uma história de reforçamento influem no repertório comportamental presente de um organismo. A fisiologia serviria justamente para substancializar a explicação comportamental. Nas palavras de Skinner (1990, p.1208):
A fisiologia estuda o produto enquanto as ciências da variação e seleção estudam a produção. O corpo funciona da forma como funciona por causa das leis da física e da química; e faz o que faz por causa da sua exposição às contingências de variação e seleção. A fisiologia nos diz como o corpo funciona; as ciências da variação e seleção nos dizem por que ele é um corpo que funciona dessa forma.
Assim, a fisiologia e a análise do comportamento não apresentam explicações concorrentes, pois focam questões distintas em suas análises. Nesse contexto, portanto, a possibilidade do reducionismo não se coloca. Afinal, tentar reduzir a teoria do comportamento à fisiologia é uma tarefa sem sentido, já que não há incompatibilidade, ameaças ou concorrência entre os âmbitos. Pelo contrário, há complementaridade: “Fatos válidos sobre o comportamento não são invalidados por descobertas sobre o sistema nervoso, e não são os fatos sobre o sistema nervoso invalidados por fatos sobre o comportamento.
Ambos os conjuntos de fatos são parte da mesma empresa” (Skinner, 1988, p.128). Já sobre a validade do projeto reducionista de um modo geral, a eloquência de Ryle (1949, p.76) atinge o ponto de maneira certeira: “Físicos talvez um dia possam encontrar as respostas para todas as perguntas da física, mas nem todas as perguntas são perguntas da física”. Sendo assim, é possível supor que o behaviorismo radical concorda com o eliminativismo a respeito dos problemas da psicologia popular, mas, por outro lado, sustenta que buscar a redução da teoria do comportamento às neurociências é, em princípio, uma tarefa sem sentido.
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.