Como vimos anteriormente, as crianças constroem hipóteses sobre como se escreve e muitos professores já ouviram falar disso. No entanto, parte importante e pouco conhecida das investigações sobre a aquisição da escrita se refere ao que poderíamos chamar hipóteses de leitura, isto é, as ideias que as crianças constroem sobre o que está ou não grafado em um texto escrito e o que se pode ler ou não nele.
As crianças, antes de aprender a ler e escrever, constroem ideias e distinções que parecem estranhas aos nossos olhos alfabetizados. Crianças pequenas costumam pensar que qualquer coisa que esteja escrita perto de uma figura deve ser o nome da figura. Por exemplo, elas imaginam que se em uma caixa de remédio há algo escrito deve ser “remédio” ou, quem sabe, “pílulas”.
A hipótese de que o que está escrito junto de uma imagem deve ser seu nome fica evidente quando perguntamos a crianças que não sabem ler o que se vê em uma figura e ela responde “uma” bola (ou “uma” boneca ou “uma” bicicleta…) e quando perguntamos o que está escrito junto da bola ela diz apenas “bola” (ou “boneca”, ou “bicicleta”, omitindo o artigo indefinido).
Essa distinção sutil é sistemática e caracteriza o que Emilia Ferreiro chamou a hipótese do nome. Isto é, no início, as crianças pensam que o que se escreve são apenas os nomes. Investigando essas ideias infantis ela descobriu coisas interessantes.
Uma de letras é a seguinte: as letras representam o nome dos objetos. Santiago, um menino de 3 anos pertencente à classe média, a mais jovem das crianças que acompanhamos longitudinalmente, foi quem fez explicitamente essa afirmação. Enquanto olhava um novo carrinho de brinquedo, das primeiras ideias que as crianças elaboram em relação ao significado de uma sequência descobriu as letras impressas no objeto e, apontando para estas letras, disse: “Aqui estão as letras. Elas dizem o que é”. O texto escrito na verdade dizia MÉXICO, mas Santiago achou que estava escrito “carro”. De modo semelhante, as crianças acham que as letras impressas em uma lata de leite dizem “leite”; que as letras em um relógio dizem “relógio”, e assim por diante. O significado de um texto escrito é, portanto, inteiramente dependente do contexto. Se o contexto for um livro com figuras, imagina-se que as letras “digam” o nome dos objetos ilustrados. A proximidade espacial entre a escrita e as gravuras é a informação relevante que as crianças procuram para descobrir qual dos textos escritos poderia “dizer” o nome de cada objeto ilustrado.
A um grupo de crianças entre 3 e 5 anos, de diferentes origens sociais – que a pesquisadora acompanhou durante dois anos, realizando entrevistas individuais a cada dois meses – apresentou-se um conjunto de cartões com imagens e um conjunto de cartelas com textos escritos.
Nenhuma das crianças sabia ler ou conhecia de memória a forma do que estava escrito nas cartelas. Solicitava-se a elas que agrupassem em pares as figuras com os escritos que “combinassem” com elas. Depois, pedia-se a cada criança que dissesse o que estava escrito em cada uma. Emilia Ferreiro classificou as respostas em três grupos, ou melhor, em três níveis:
As crianças no nível 1 deixam evidente que o significado atribuído ao escrito (texto) depende inteiramente do contexto: o significado do texto muda tantas vezes quanto varia o contexto. Por exemplo, se um determinado texto tiver sido colocado em relação à imagem de uma girafa, “ele diz girafa”, mas o mesmo texto escrito pode “dizer” outros nomes (“leão”, “cavalo” etc., se o conjunto de cartões ilustrados for um conjunto de animais). O mesmo texto escrito pode “dizer” novamente “girafa”, se for outra vez colocado nas proximidades daquela imagem. (…)
As crianças no nível 2 já não aceitam que um texto escrito dependa tão completamente do contexto e, nas entrevistas, explicam:
O que caracteriza o nível 3 é a possibilidade de considerar algumas propriedades do próprio texto escrito em relação à imagem. Vejamos um exemplo – em outro tipo de experimento – onde a criança considera as propriedades quantitativas do texto, sem renunciar à ideia de que só os nomes estão escritos.
Ana Teresa (5 anos e 3 meses) procura interpretar um texto de três segmentos que acompanha a imagem de uma cena com vários personagens. O texto é: “as galinhas comem” e Ana Teresa pensa que está escrito “gato, galinha, menino” um nome para cada um dos segmentos, na ordem da esquerda para a direita; trata-se de três nomes de personagens representados na figura. Quando, porém, no mesmo dia, a mesma menina procura interpretar outro texto de três segmentos que acompanha uma figura com um único personagem, suas dificuldades se tornam manifestas. A figura é um pato na água. O texto é “o pato nada”. Ana Tereza começa tentando uma silabação do nome “pato”, a fim de ajustar-se às segmentações do texto: atribui a primeira sílaba (“pa”) ao primeiro segmento do texto (“o”) e a segunda sílaba (“to”) ao resto do texto (“pato nada”). Esta solução não a satisfaz porque deve atribuir uma única sílaba a dois segmentos. Tenta então outra solução: atribui o nome “pato” a um dos segmentos maiores (“nada”), pensa que diz “água” no outro segmento de quatro letras (“pato”) e, como não lhe ocorre mais nada porque não há outros elementos na figura, atribui o nome “cores” ao segmento restante (“o”).
Uma das ideias mais surpreendentes (surpreendentes para nosso olhar alfabetizado, é claro) construídas pelas crianças no início de seu contato com o mundo da escrita é a distinção entre o que está escrito e o que se pode ler. A ideia de que se deve escrever tudo o que se quer dizer não é compreendida antes que a criança se alfabetize. Pelo contrário, descobrir que é necessário escrever tudo, sem omitir nada, requer bastante experiência com a língua escrita. Emília Ferreiro e colaboradores realizaram experimentos com crianças de diferentes países, diferentes línguas, diferentes idades e classes sociais, buscando compreender a natureza e a evolução dessa distinção entre “o que está escrito” e “o que se pode ler”.
E observaram que, em torno dos 4 ou 5 anos, crianças urbanas costumam pensar que apenas os substantivos precisam estar escritos para que se possa ler um enunciado. Como quando uma criança desenha, por exemplo, um menino jogando bola: o que aparece no desenho é o menino e a bola, tudo o mais é inferido por quem o interpreta quando olha para o desenho e diz: “o menino está jogando bola”. Vejamos um exemplo concreto para ajudar a compreender:7 Apresentamos e lemos para a criança a oração: “a menina comprou um caramelo”.
A criança a repete corretamente (repetindo inclusive o assinalar contínuo que acabamos de fazer). Se lhe perguntarmos onde está escrito “menina” ou “caramelo”, não terá dificuldades em assinalar alguma das palavras escritas (não importa, no momento, saber se a indicação é ou não correta), mas não lhe ocorrerá que o verbo, e muito menos os artigos, estejam escritos. De acordo com a análise realizada pelas crianças deste nível, existem partes escritas em demasia, e bastaria apenas duas palavras: “menina” e “caramelo” para se poder ler uma oração completa. O que falta não é a memória imediata (já que a criança consegue repetir a oração quando lhe perguntamos: “o que dizia o texto todo?”).
É um problema de contraste de concepções. Para poder utilizar a informação oferecida pelo adulto (quando lê o texto para ela), a criança deveria partir das suposições básicas de nosso sistema escrito: que todas as palavras ditas estão escritas, e que a ordem da escrita corresponde à ordem da enunciação. É interessante observar que as ideias das crianças sobre “o que está escrito” e “o que se pode ler” evoluem em direção à correspondência termo a termo entre o falado e o escrito, não dependendo para isso dá decifração ou do conhecimento das letras. Esta é uma evolução conceitual e acredita-se que esteja relacionada às oportunidades de contato com a escrita. Retiramos do mesmo artigo citado acima a transcrição de três entrevistas que nos parecem muito esclarecedoras. A oração que nos servirá de exemplo é: “Papai martelou a tábua”.
Como vemos, Erick consegue atribuir cada parte falada a uma parte escrita, apesar de não saber ler.
Sílvia consegue atribuir o verbo (martelou) à sua escrita mas lhe parece inadmissível que algo possa estar escrito em um segmento com apenas uma letra. Imagina então que esta letra possa ser um pedaço de um dos substantivos, no caso o “ta”, de tábua.
Mas para Laura apenas os nomes estão escritos. Tanto que não teve dúvidas em transformar o verbo “martelou” no substantivo “martelo”. Este não foi um procedimento particular de uma criança. No caso desse enunciado, várias crianças que estavam nesse momento do processo transformaram “martelou” em “martelo”, uma solução engenhosa para resolver a questão ali, naquele momento. Esta questão – a distinção entre “o que está escrito” e “o que se pode ler” – evolui, evidentemente, na direção inversa à da apresentação das entrevistas. Erick é mais avançado que Silvia e esta, que Laura.
No entanto os três têm a mesma idade. Estamos enfatizando este fato para marcar que na evolução das ideias sobre a escrita a idade conta menos que o tempo de participação em situações e atividades onde a escrita está direta ou indiretamente presente. Se a idade fosse a variável mais importante, não existiriam adultos analfabetos. As ideias infantis que descrevemos aqui são construções originais das crianças e dão inúmeras pistas ao leitor atento sobre por que é importante oferecer à criança a oportunidade de se defrontar com textos nos quais ela sabe o que está escrito ou pode deduzir a partir do contexto. Colocá-la frequentemente neste tipo de situação é oferecer-lhe oportunidades para pensar sobre a escrita, elaborar hipóteses, testá-las e reconstruí-las progressivamente, apoiando-a em seu esforço para aprender a ler e escrever.
REFERÊNCIAS:
Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.