Maria Beatriz Ferreira
Por longo tempo, a alfabetização foi entendida como mera aquisição de habilidades referentes à leitura e à escrita, talvez porque a palavra “alfabetizar” tenha, etimologicamente, o significado de levar à aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar o código da língua. Em decorrência desse entendimento, dava-se prioridade à prática mecânica do código escrito, que visava à leitura e à escrita de sílabas e palavras descontextualizadas, desprovidas de significado. Essa prática transformava a alfabetização em uma atividade sem sentido, pois a linguagem trabalhada era geralmente distanciada do seu uso real e de sua função principal – a interação entre as pessoas.
Mais tarde, por influência de teorias que têm ressaltado a função interlocutiva da linguagem e o seu papel como enunciado ou discurso significativo, passou-se a defender o uso do texto como núcleo do trabalho com a língua, desde a alfabetização. O significado tornou-se então prioritário no processo, e o trabalho com o código escrito ficou, por vezes, relegado a um segundo plano, passando até mesmo a ser considerado irrelevante por alguns professores. Entende-se, hoje, que os dois procedimentos precisam ser repensados.
Não há dúvida de que em uma proposta que reconhece a linguagem como prática social, como forma de interlocução entre sujeitos que a utilizam – oralmente e por escrito – para a produção de sentidos, não se pode deixar de vivenciá-la em textos reais, dentro dos diversos gêneros utilizados no dia-a-dia. Mas, por outro lado, para que os alunos possam escrever textos que tenham sentido e compreender o que dizem os tantos textos escritos que circulam socialmente, sabe-se que a apropriação do código escrito também se faz necessária. O texto escrito não se configura como forma de diálogo, de interlocução, se não tiver a clareza necessária para ser compreendido.
E essa clareza depende, inegavelmente, de certos conhecimentos relativos à língua escrita. Não se quer dizer, com isso, que a criança só poderá produzir textos escritos se tiver o domínio ortográfico. É justamente pensando sobre a escrita, formulando hipóteses sobre a grafia das palavras que deseja usar, articula-se para produzir diferentes significados. Assim, após a leitura e aplicando tais hipóteses nos textos que produz e reformulando-as quando necessário – buscando compreender a linguagem escrita como um sistema de representação e não como simples processo de codificação – que ela pode chegar a tal domínio.
Como afirmam ABAURRE e CAGLIARI (1995, p. 26): “As crianças podem perfeitamente escrever, produzir textos, antes de dominarem a convenção ortográfica. É, aliás, somente a partir da relação com a escrita que elas vão entender sua convencionalidade e a necessidade, daí decorrente, de fixar a forma da palavra.” É, portanto, experienciando a língua escrita também em seu aspecto material – o do significante – que pressupõe a codificação e a decodificação de símbolos sonoros e a apropriação gradativa do complexo sistema de correspondência fonemas/letras, que o alfabetizando poderá utilizá-la, enquanto veículo de significação, na leitura e produção de textos.
Vários tipos de textos podem ser considerados no trabalho com os alfabetizandos: a) palavras-textos (principalmente os nomes dos alunos); b) frases significativas que, em dados contextos, constituem interlocuções completas; c) textos coletivos, produzidos pelos alunos e pelo professor, ou por grupos de alunos; d) textos individuais, orais e escritos, que assegurem aos alunos diferentes condições de produção; d) textos impressos relacionados a temas do dia-a-dia, produzidos por diferentes autores, em diferentes estruturas e gêneros. Convém lembrar que o texto não deve ser tomado como mero pretexto para a apresentação de uma palavra-chave, de famílias silábicas ou de letras e fonemas, mas como um discurso significativo no qual as palavras se revestem de sentido.
Para tanto, ele se apresenta como linguagem em ação, em um contexto interativo no qual autor e leitor interagem e atribuem significados às palavras. Difere, por conseguinte, do amontoado de palavras geralmente sem sentido e sem nexo que, num uso extremamente artificial da linguagem, caracterizam os pretensos textos cartilhescos, os quais objetivam apenas o aprendizado de determinadas letras e/ou famílias silábicas. É importante ressaltar, também, que um texto escrito não se restringe apenas à transposição de palavras da linguagem oral para sua representação com caracteres do sistema de escrita. Um texto escrito tem convenções próprias que o tornam diferente do texto oral em muitos aspectos da organização do discurso.
Se a escola não ensinar essas convenções, o aluno produzirá textos que refletem diretamente a oralidade, não adequados, portanto, à forma escrita. Dessa forma, as atividades propostas em sala de aula devem desencadear reflexões sobre a forma como a língua escrita organiza-se e compreensão global do texto selecionado, dele podem ser destacadas frases ou palavras que tenham um significado especial no contexto de sua produção e leitura, para a sistematização das unidades menores de escrita. Nesse trabalho, os alunos entrarão em contato com muitas palavras – então saturadas de sentido – comparando-as, observando suas semelhanças e diferenças, e procurando possíveis explicações para as diferentes combinações de sílabas e letras.
Em um processo ativo, mediado pelo professor, poderão checar as hipóteses que frequentemente elaboram e constatar que algumas delas são equivocadas como, por exemplo, as de que cada letra corresponde sempre a um mesmo som; de que uma letra sozinha não pode constituir sílaba ou palavra; e de que as sílabas têm duas letras e iniciam sempre por consoante. Poderão, também, observar as diferenças entre pares de palavras como gente e jeito, xarope e chácara, cinema e sino, entre outros. Como se vê, é no texto que as relações entre código e significado se concretizam e é da prática textual que surgirão a frase e a palavra, ou seja, que se buscará a matéria-prima a ser trabalhada na alfabetização.
É importante, pois, que o professor planeje e desenvolva um trabalho sistematizado no qual, partindo de contextos significativos, proponha aos alunos atividades que possibilitem a análise, no interior da palavra, dos padrões silábicos e relações entre fonemas e letras. Através da recombinação de sílabas, o aluno – sujeito do processo – descobre novas palavras a partir da sua vivência, as quais podem adquirir significações distintas, dependendo do contexto no qual forem inseridas. Portanto, não basta oportunizar à criança o contato com o material escrito para que ela, espontaneamente, se aproprie da língua escrita.
É fundamental que o professor estabeleça com os alunos uma reflexão sobre os aspectos convencionais da escrita, a fim de que eles compreendam, principalmente, que a aprendizagem da leitura e da escrita implica compreender as leis de composição do sistema de representação da linguagem escrita. Contribui para essa compreensão a utilização de jogos lúdicos linguísticos, cuja estrutura o professor pode adaptar ao universo vocabular do texto que estiver trabalhando. Tais jogos – entre eles o bingo, o dominó, o quebra-cabeças, o stop, o jogo de “dicas”, o caça-palavras e tantos outros – além de favorecerem a aplicação de conceitos como os de letra, vogal, consoante, sílaba, e palavra, e de explorarem o valor posicional das letras – oportunizam uma relação mais ativa e prazerosa dos alunos com um conteúdo geralmente árido – o sistema da língua.
É acompanhando o interesse, as necessidades específicas e o ritmo de sua classe que o professor pode construir, gradativamente, uma ação pedagógica cada vez mais eficaz, na qual o processo de alfabetização pode ser trabalhado, simultaneamente, em suas duas dimensões – a do significado e a do significante, em contextos de fato significativos para os alunos.
REFERÊNCIAS:
Orientações Pedagógicas: língua portuguesa, sala de apoio à aprendizagem / Paraná. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Departamento de Ensino Fundamental. – Curitiba: SEED – Pr., 2005.