Os problemas de saúde mental na infância e adolescência afetam cerca de 20% das crianças em todo o mundo (Bird, 1996; Murray; Lopez, 1996). Há similaridade entre os tipos de transtornos mentais observados em crianças de diferentes países e culturas. Apesar do impacto causado por estes problemas, são mundialmente escassas as políticas voltadas para a saúde mental de crianças (WHO, 2005; BMA, 2006).
CAPÍTULO 1 10 Um estudo que avaliou a presença de políticas de saúde mental para crianças e adolescentes em 191 países pertencentes à Organização das Nações Unidas constatou que nenhum país tinha uma política específica para crianças e adolescentes.
Apenas 7 deles tinham políticas de saúde mental claramente articuladas para atender as necessidades da infância e adolescência (Shatkin; Belfer, 2004). No Brasil, ainda há muito que fazer em diversos níveis para se alcançar saúde mental nesta fase da vida:
Saúde mental
Estado de bem estar no qual o indivíduo realiza suas habilidades, lida com os estresses da vida, trabalha produtiva e frutiferamente e é capaz de dar sua contribuição para a comunidade (WHO, 2005).
Os problemas de comportamento são tipos de transtornos à saúde mental comuns na infância. São comportamentos socialmente inadequados. Representam déficits ou excedentes comportamentais que prejudicam a interação da criança com outras e com adultos de sua convivência (Silva, 2000).
Uma forma simplificada de categorizar os problemas de comportamento é dividi-los em: problemas que se internalizam, tais como depressão, ansiedade e queixas somáticas, em que os sintomas estão principalmente interiorizados no indivíduo; e problemas que se externalizam, tais como conduta desafiadora excessiva e transtornos de conduta (agressividade às pessoas e animais e comportamento transgressor), em que os sintomas estão dirigidos para fora (Bee, 1996).
É muito comum que sintomas de problemas internalizantes e externalizantes estejam presentes na mesma criança, embora geralmente haja tendência maior a manifestações sintomáticas de um mesmo tipo (Youngstrom et al., 2003).
Um importante clínico e pesquisador, Thomas Achenbach, elaborou um instrumento para identificar problemas de comportamento em crianças, mundialmente conhecido e utilizado (Achenbach 1991; Achenbach; Rescorla, 2001), que pode ser aplicado tanto em serviços de saúde como em outros locais como escolas.
Este instrumento, chamado de CBCL1 , avalia sintomas de problemas internalizantes e externalizantes, bem como aqueles ligados à atenção (hiperatividade e déficit de atenção), ao controle do pensamento (comportamentos estranhos, obsessões e compulsões) e a dificuldades no contato social.
A CBCL permite avaliar quando ocorrem vários sintomas associados e de ocorrência muito frequente, que prejudicam mais diretamente as crianças; neste caso temos crianças com problemas de comportamento em nível clínico. Quando os sintomas são menos frequentes e/ou ocorrem mais isoladamente, são denominados limítrofes.
Utilizando este instrumento na rede de ensino público de São Gonçalo – RJ, em 2005, vimos que os problemas internalizantes em nível clínico são os mais frequentes entre as crianças, alcançando 12% dos alunos de primeira série do ensino fundamental (gráfico 1). São seguidos de perto pelos problemas externalizantes.
Com menor frequência estão os problemas ligados à atenção, ao controle do pensamento e ao contato social.
Dentre os problemas internalizantes em nível clínico, encontrados entre as 500 crianças de São Gonçalo, os que mais predominam são as queixas somáticas (6,2%), seguidos pelos relacionados ao retraimento/depressão (4,3%) e a ansiedade/ depressão (4,1%). Um estudo com 1251 crianças escolares de 7-14 anos, em Taubaté/São Paulo encontrou 5,2% de crianças com transtornos de ansiedade (Fleitlich-Bilyk; Goodman, 2004).
Em outros países como a Grã-Bretanha, as taxas de prevalência são ligeiramente mais baixas, em comparação a amostras brasileiras (3 a 4%) (Emerson, 2003). Outro trabalho brasileiro, feito com 206 crianças em Unidade de Atenção Básica na cidade de São Paulo, encontrou 23,8% de transtornos de ansiedade, medidos através da CBCL.
Este resultado pode ser entendido pelo fato de que o estudo foi feito com crianças já com problemas clínicos que recorreram a atendimento em serviços de saúde; também contribui para os resultados o fato de que a maior parte das crianças tinha problemas de saúde mental (Lauridsen-Ribeiro; Tanaka, 2005). A ansiedade é uma reação defensiva comum frente ao perigo ou situações consideradas ameaçadoras.
Caracteriza-se por um grande mal estar físico e psíquico, aflição, agonia. É uma reação comum. Todos nós já sentimos alguma sensação de ansiedade em vários momentos da vida. Faz parte dos mecanismos fisiológicos de resposta do ser humano ao estresse (Craske; Barlow, 1999).
Passa a se transformar num transtorno quando chega a impedir o funcionamento da criança em sua vida cotidiana na família e na escola. Na escala de ansiedade/depressão de Achenbach & Rescola (2001), que usamos no estudo que originou este livro, se destacam os sintomas de ansiedade (gráfico 2).
Os itens abordados por Achenbach & Rescola (2001) são: ter medo da escola; ter medo de certos animais, situações ou lugares; ter medo de pensar ou fazer algo destrutivo (contra si e contra outros); ter “mania de perfeição”, achar que tem que fazer tudo certinho; ser nervoso ou tenso; ser medroso ou ansioso demais; ficar sem jeito na frente dos outros com facilidade, preocupado com o que as pessoas possam achar dele; falar que vai se matar; ser muito preocupado; chorar muito; achar que ninguém gosta dele; sentir-se desvalorizado, inferior; sentir-se excessivamente culpado.
A prevalência de sintomas de ansiedade avaliada pela CBCL está apresentada no gráfico 2. Equivale aos sintomas presentes nos transtornos de ansiedade de separação, de ansiedade generalizada e fobias específicas da DSM-IV-R (APA, 2002), e expressados pelas crianças de São Gonçalo.
Falaremos neste livro sobre a vida dessas crianças com destacados sintomas de ansiedade (4,1%). No entanto, outras 5,2% das crianças da rede pública de ensino de São Gonçalo manifestaram sinais que ainda não caracterizam ansiedade em nível clínico (são crianças limítrofes), indicando a necessidade de apoio e observação ao longo de seu crescimento e desenvolvimento.
No total, temos 9,3% de crianças com sintomas de ansiedade e que merecem mais atenção por parte de seus pais, professores e profissionais de saúde. Não estamos fazendo diagnósticos definitivos de transtornos mentais e sim apontando prováveis quadros que merecem ser melhor conhecidos e acompanhados pelos profissionais que atuam com crianças.
A comorbidade1 de problemas de comportamento na infância é muito comum. Entre as crianças de São Gonçalo, identificamos que 54% das crianças que tinham algum transtorno possuíam também outro tipo de problema associado. Especialmente sintomas de ansiedade, depressão e desatenção/hiperatividade costumam ocorrer em conjunto. Isto nos leva a ter sempre em mente que é preciso avaliar os vários comportamentos infantis, antes de pensarmos qual atendimento, encaminhamento e tratamento é o mais indicado para cada criança.
Como a escala de ansiedade da CBCL apenas capta sintomas de transtorno de ansiedade de separação, de ansiedade generalizada e fobias específicas, outros tipos de transtornos de ansiedade não foram avaliados e estarão sucintamente descritos como outros transtornos de ansiedade (item 2.4) no próximo capítulo. Logo, é provável que mais crianças manifestem sintomas de ansiedade do que pudemos identificar neste livro.
Isto mostra a dimensão do problema que precisamos aprender a lidar nos serviços de saúde. Nos próximos capítulos falaremos com detalhes dos vários tipos de transtornos da ansiedade que acometem as crianças. Daremos destaque para os transtornos de estresse pós-traumático (TEPT), fruto da convivência de crianças com acidentes, violências ou outros traumas.
Para avaliar TEPT, utilizamos uma outra escala derivada dos estudos de Achenbach2 , que agrega sinais comumente demonstrados pelas crianças com sintomas de TEPT: muita argumentação, distração, obsessão, dependência, medo de pensamentos destrutivos contra si e os outros, pensamentos de perseguição, ser nervoso ou tenso, ter pesadelos, ser medroso ou ansioso demais, sentir-se muito culpado, apresentar problemas físicos sem causa médica (dor de cabeça, náusea/ enjôo, dor de estômago ou de barriga, vômito), ser fechado e reservado, mal-humorado e irritar-se com facilidade, ter mudanças de humor, problemas de sono, ser infeliz ou deprimido, ser retraído e não se relacionar com os outros.
Encontramos 6,5% de crianças com sintomas em nível clínico de TEPT (gráfico 3). Claro que várias delas tinham também outros sintomas psiquiátricos, incluindo os de ansiedade.
Nenhuma das escalas que usamos para reconhecer sintomas de ansiedade equivale ao diagnóstico feito por um clínico. Elas servem apenas como uma triagem para que mais crianças possam ser precocemente avaliadas e cuidadas, evitando que apenas procurem os serviços de saúde na adolescência ou vida adulta.
Por outro lado, lembramos que o diagnóstico em psiquiatria, especialmente na infância, costuma ser tarefa complexa, até mesmo para clínicos muito experientes. Crianças mostram sintomas de forma peculiar. Além disso, esses sintomas algumas vezes só são reconhecidos depois que as mudanças emocionais e comportamentais se estabelecem.
De todas as dificuldades e limitações existentes ao lidar com crianças com problemas de saúde mental, reiteramos a necessidade de buscar mais informações e troca de experiências sobre questões de saúde mental em geral, e sobre transtornos de ansiedade especificamente.
Embora ainda pouco valorizada em nosso meio, a vivência contínua com sintomas de ansiedade pode deixar cicatrizes profundas na vida das crianças, muitas vezes acompanhando-as ao longo da adolescência e vida adulta (Yehuda et al., 2001).
REFERÊNCIAS:
Assis, Simone Gonçalves de Ansiedade em crianças: um olhar sobre transtornos de ansiedade e violências na infância / Simone Gonçalves de Assis; Liana Furtado Ximenes; Joviana Quintes Avanci; Renata Pires Pesce. — Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ENSP/CLAVES/CNPq, 2007. 88p. (Série Violência e Saúde Mental Infanto-Juvenil)