Dualismo cartesiano

Indagações relativas à mente sempre estiveram de alguma forma presentes na filosofia, mas foi principalmente com Descartes que elas tomaram a forma que despertou tanto interesse do pensa‑ mento filosófico posterior. Todavia, o objetivo do autor não era propriamente apresentar uma teoria da mente, mas sim buscar um fundamento sólido a partir do qual a construção do conhecimento livre de conjecturas e erros fosse possível.

De acordo com Malcolm (1972), Descartes pretendia estabelecer algum ponto de certeza na metafísica e, para tanto, o autor valeu‑se da dúvida metódica, método que consiste em rejeitar como totalmente falso todo e qual‑ quer conhecimento que possua o menor indício de dúvida.

Tal estratégia atingiu seu ápice quando Descartes presumiu que um gênio maligno dedicava todo o seu tempo para enganá‑lo através dos seus sentidos, raciocínios e sonhos, o que o levou a rejeitar quase todas as coisas: “Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos não passam de ilusões e fraudes” (Descartes, 1641/1999b, p.255).

Já sobre si mesmo afirma o autor (1641/1999b, p.255): “Considerei a mim mesmo totalmente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de possuir todas essas coisas”. Ao deparar‑se com a negação de quase todas as coisas, Descartes (1641/1999b), então, avalia se também não havia negado a sua própria existência. Nesse processo, o autor encontra duas provas de que a sua existência seria inquestionável.

A primeira consiste no fato de que, se há um gênio maligno que dedica todo o seu tempo para enganá‑lo, então o simples fato de ser o sujeito enganado indica que ele é alguma coisa e, assim, que ele existe. A segunda prova está no exercício de duvidar de todas as coisas: duvidar é uma forma de pensamento e, ao ser pensante, é possível duvidar de qualquer coisa menos do fato de que ele é um ser pensante.

Ora, como poderíamos duvidar do fato de que estamos pensando se esse ato é ele próprio uma atividade pensante da qual somos conscientes e que garante nossa existência enquanto se realiza? E assim conclui Descartes (1641/1999b, p.262): “Mas o que sou eu, então? Uma coisa que pensa.

Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”. Descartes, enfim, encontra o ponto seguro e inquestionável sobre o qual seria fundamentada a sua filosofia: a sua própria existência enquanto ser pensante.

Ao discorrer sobre a existência das coisas, Descartes (1642/1984, p.155) afirma: “se algo pode existir sem uma propriedade, então […] essa propriedade não está incluída em sua essência”. A busca da natureza essencial é, portanto, a busca da propriedade que, se ausente, resulta na inexistência.

A essência da mente seria, então, a característica essencial à sua própria existência, a saber, o pensa‑ mento. Foi justamente a busca de argumentos que sustentassem a ideia de que a natureza essencial da mente seria o pensamento que resultou no dualismo de Descartes. De acordo com Malcolm (1965), haveria três argumentos principais sustentados pelo autor. O primeiro deles é o argumento da dúvida: podemos duvidar da existência dos nossos corpos sem entrar em contradição, mas o mesmo não ocorre quando duvidamos da nossa existência.

Não é possível duvidar da própria existência por causa das duas provas apresentadas anteriormente: é preciso que exista um sujeito para o gênio maligno enganar, e não se pode duvidar do pensamento porque duvidar é pensar. Mas esses argumentos não se sustentam quando lidamos com o corpo: o gênio maligno pode nos enganar a respeito dos nossos próprios corpos, e não há contradição em duvidar da existência do corpo, já que o corpo não é pensamento. Assim, o corpo não é parte da essência da mente.

A segunda prova está no argumento do conhecimento privilegiado que temos de nossa própria mente (e.g., Burge, 1988; Byrne, 2005; Curley, 2006; Kim, 1996; Shoemaker, 1988, 1990, 1994). Di‑ gamos, por exemplo, que um sujeito S veja uma “bola vermelha”. Nesse caso, a “bola vermelha” pode ser uma ilusão criada pelo gênio maligno, mas o estado mental perceptivo de ver a “bola vermelha” existe, pois, se assim não fosse, o sujeito S não estaria consciente de estar vendo a “bola vermelha”.

Curley (2006) denomina essa característica da mente de transparência, segundo a qual a mente seria “transparente” no sentido de que nós teríamos conhecimento contínuo, direto e não inferencial a respeito dos nossos próprios estados mentais. Haveria outra característica da mente, de acordo com Curley (2006), que contribuiria para o conhecimento privilegiado: a incorrigibilidade. A mente seria “incorrigível” no sentido de que estar no estado mental “M” necessariamente implica estar no estado mental “M”.

Por exemplo, se o sujeito S crê que está vendo uma “bola vermelha”, então ele necessariamente tem essa crença. A “bola vermelha” pode ser uma ilusão criada pelo gênio maligno, mas isso não invalida a crença de estar vendo a “bola vermelha” enquanto estado mental. Finalmente, a terceira prova estaria nas diferenças entre as propriedades da mente em relação às propriedades do corpo.

A primeira diferença está na divisibilidade do corpo em comparação à indivisibilidade da mente, já que “não podemos conceber a metade de alma alguma, da mesma maneira que podemos fazer com o menor de todos os corpos” (Descartes, 1641/1999b, p.242). A segunda diferença é que a mente seria pura, enquanto o corpo seria composto: “mesmo que todos os seus acidentes se modifiquem […] trata‑se sempre da mesma alma; enquanto o corpo humano não é mais o mesmo pelo simples fato de haver‑se alterado a configuração de alguma de suas partes” (Descartes, 1641/1999b, p.243).

A diferenciação entre corpo e mente fica ainda mais clara quando Descartes (1641/1999b, p.260) apresenta a sua definição de corpo:

Por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal maneira que todo outro corpo seja excluído dele; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo olfato; que pode ser movido de muitos modos, não por si mesmo, mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impressão.

A mente não ocupa lugar no espaço; não é limitada por uma figura; não é movida a não ser por si mesma; e não é sentida pelo tato, visão, audição ou olfato; mas é conhecida diretamente. A essência do corpo, em seu turno, seria ocupar lugar no espaço, ou seja, ser extenso. Por outro lado, a essência da mente seria o pensamento, um fenômeno que não possui essa característica do corpo, mas tampouco é algo de que se possa duvidar da existência.

Consequente‑ mente, por ser impossível colocar a existência do pensamento à prova e por conta do fato de que ele supostamente não faria parte do mundo físico do qual o corpo, por sua vez, faria parte, Descartes conclui que a mente deveria possuir natureza diferente da física. Sendo assim, o dualismo cartesiano sustenta que a mente e o corpo são substâncias de naturezas diferentes. Nas palavras do autor (1641/1999b, p.320):

Pelo próprio fato de que sei com certeza que existo, e que, contudo, percebo que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, salvo que sou uma coisa que pensa, concluo que minha essência consiste apenas em que sou uma coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, apesar de, embora talvez […] eu possuir um corpo ao qual estou estreita‑ mente ligado, pois, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e sem extensão, e que, de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que é somente algo com extensão e que não pensa, é certo que este eu, ou seja, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é completa e indiscutivelmente distinta de meu corpo e que ela pode existir sem ele.

Em poucas palavras, não podemos duvidar da existência da substância mental e nem de que somos seres que pensam, mas podemos duvidar de todo o resto. A essência da mente, portanto, é pensar, já que não há pensamento sem uma mente que pense e não há mente que pense sem o ato de pensar. Descartes, assim, conclui que, por se tratar de duas substâncias distintas, a mente e o corpo possuiriam existências distintas.

Assim, a mente não pereceria com o corpo. As características da mente e do corpo estão reunidas no Quadro 1.1.2 Quando temos duas substâncias distintas, uma das principais questões que se coloca é a seguinte: haveria algum tipo de relação entre mente e corpo? Isto é, o corpo exerceria influência nos estados mentais e estes, por sua vez, seriam capazes de influenciar o corpo? É possível analisar esse problema mediante as abordagens paralelista e interacionista.

Armstrong (1968) apresenta uma analogia bastante esclarecedora sobre o assunto: as diferenças entre paralelismo e interacionismo seriam equivalentes às diferenças entre (1) um quarto e um termostato e (2) um quarto e um termômetro.

Dualismo cartesiano

Um quarto e um termostato interagem entre si. O aumento da temperatura do quarto ativa o termostato que, por sua vez, faz com que a temperatura volte ao padrão preestabelecido. Dessa forma, o quarto causa mudanças no termostato e este causa mudanças no quarto. Por outro lado, no caso do termômetro não há interação: o aumento da temperatura no quarto é acompanhado paralelamente pelo aumento do nível do mercúrio no termômetro.

Nesse caso, embora o aumento da temperatura seja responsável pela mudança no termômetro, não há interação entre os processos, já que o termômetro não reage sobre o quarto. Armstrong (1968) ressalta que essa forma de paralelismo é mais branda, pois se admite que haja in‑ fluências do corpo (“quarto”) sobre a mente (“termômetro”). Uma forma mais extrema de paralelismo negaria qualquer tipo de relação.

Ainda com o exemplo do termômetro, a variação de temperatura do quarto e a mudança de nível do mercúrio no termômetro ocorreriam paralelamente, mas sem relação direta. Poderíamos dizer, por exemplo, que há uma terceira força responsável por ambas as variações: talvez uma intervenção divina seja a causa tanto da mudança de temperatura quanto da mudança no termômetro. Outra saída seria dizer que a ocorrência contígua das variações não passa de uma grande coincidência.

Já o paralelismo brando, de acordo com Armstrong (1968), assume que o corpo influencia a mente, mas não o contrário. O problema desse paralelismo é que, da forma como está posto, a única consequência possível seria o epifenomenalismo do mental. Afinal, o que o paralelismo brando faz é negar qualquer tipo de poder causal à mente. O interacionismo, como o nome indica, consiste na tese de que há inter‑relações entre mente e corpo.

Descartes era interacionista, pois não negava a existência de relações entre a mente e o corpo, chegando inclusive a localizar anatomicamente o local dessas relações no cérebro ou, mais precisamente, numa “determinada glândula muito diminuta, situada no meio de sua substância [cerebral]” (Descartes, 1649/1999a, p.124), a saber, na glândula pineal. O problema, entretanto, é como poderia algo não físico como a mente cartesiana se relacionar com algo físico como o corpo, mas Descartes não tratou diretamente dessa questão.

Sua contribuição foi a de simplesmente localizar qual seria o ponto de contato entre mente e corpo. Dessa forma, é possível sugerir que Descartes não ofereceu uma resposta ao problema mente‑corpo, mas, pelo contrário, colocou o problema para a posteridade.

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REFERÊNCIAS:

A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.