Teorias do aspecto dual

Teorias do aspecto dualCom o propósito de estabelecer o caráter definitório da mente, o dualismo cartesiano postulou a existência de duas substâncias distintas, a mental e a física. No entanto, essa manobra trouxe à tona o problema mente‑corpo: como é possível que a mente exista e exerça influência no mundo físico? A primeira parte da questão não se coloca no dualismo cartesiano, pois, desde o princípio, a teoria de Descartes já postulava a realidade do cogito.

A existência da mente enquanto substância imaterial não estava em questão, sendo, inclusive, o ponto de partida do sistema cartesiano. A Descartes restou apenas a tarefa de provar como a relação entre a mente e o corpo era possível, mas a localização do ponto de contato entre esses dois mundos na glândula pineal estava longe de ser uma resposta cabível.

O problema mente‑corpo, portanto, se coloca fundamental‑ mente a partir da visão fisicalista de mundo (Zilio, 2010). De acordo com Kim (1999, p.645), o fisicalismo é a tese segundo a qual “tudo o que existe no mundo espaço‑temporal é uma coisa física, e de que todas as propriedades das coisas físicas são ou propriedades físicas ou propriedades intimamente relacionadas à sua natureza física”.

O behaviorismo filosófico, as teorias centralistas e o eliminativismo são exemplos de teorias fisicalistas – a despeito de suas diferenças, todas possuem o mesmo objetivo: mostrar que é possível esgotar tudo o que concebemos como “mental” a partir de uma análise fisicalista do mundo, sem ser preciso admitir, assim, a existência de uma substância imaterial. O fisicalismo pretende, em poucas palavras, explicar a mente sem ter que ir além do mundo físico.

As teorias do aspecto dual surgem principalmente como críticas dirigidas às teorias fisicalistas. Extraído de Nagel (1986/2004), o termo “aspecto dual” indica que há no mental uma dualidade entre subjetivo e objetivo; uma dualidade que seria intransponível pelo fisicalismo. Por serem essencialmente objetivas, as pesquisas científicas fundamentadas pelos parâmetros fisicalistas – em especial, as neurociências – não dariam conta da subjetividade.

Contudo, ao mesmo tempo em que pretendem negar o fisicalismo, as teorias do aspecto dual não sustentam a dualidade pela postulação da existência de uma substância imaterial. Para esclarecer esse projeto, comecemos com os argumentos apresentados por Jackson (1982, 1986). Jackson (1982, 1986) pede que imaginemos o caso de Mary, uma neurocientista interessada em estudar os processos cerebrais referentes à percepção visual.

Entretanto, Mary vivia trancada em um quarto preto e branco, suas investigações sobre o funciona‑ mento do cérebro eram realizadas através de um monitor preto e branco e seus livros eram também todos em preto e branco. Enfim, Mary vivia em mundo preto e branco. Mas mesmo assim Mary se tornou uma neurocientista de renome na área da percepção visual.

Ao longo dos anos de estudo ela conseguiu delimitar todos os processos cerebrais referentes à percepção visual. Observando o funcionamento do cérebro, Mary sabia identificar quais os objetos que os sujeitos experimentais experienciavam naquele momento. Conseguia, inclusive, identificar as características desses objetos, principalmente as suas cores.

Assim, se um sujeito experimental via uma “maçã vermelha”, Mary conseguia identificar que era uma “maçã vermelha”. Eis a questão: o que acontecerá quando Mary sair do quarto preto e branco ou quando ela tiver acesso a um monitor ou a livros coloridos? Ela aprenderá algo novo? Isto é, algo além do que ela aprendera pelos seus estudos neurocientíficos a respeito da percepção visual? A resposta de Jackson (1982, p.130) é positiva: “é indiscutível que o seu conhecimento prévio era incompleto.

Mas ela possuía todas as informações físicas. Portanto, há mais para se ter do que isso, e o fisicalismo é falso”. Em outras palavras, Mary sabia tudo o que se podia saber sobre a neurofisiologia da percepção visual, especialmente no que concerne à percepção de cores. Todavia, ao sair do quarto e entrar em contato com coisas de outras cores, ela adquiriu novos conhecimentos.

Assim, há mais para se conhecer do que as informações neurocientíficas, o que significa que a estratégia fisicalista não abrange tudo o que concebemos como “mental”. Há um trecho do artigo de Jackson (1982, p.127) que pinta com cores fortes essa tese:

Diga‑me tudo o que existe para dizer sobre o que está acontecendo em um cérebro vivo, os tipos de estados, seus papéis funcionais, suas relações com o que está acontecendo em outros momentos e em outros cérebros, e assim por diante, e sendo eu tão inteligente quanto se deve ser para juntar tudo isso, você não terá me dito nada sobre o desprazer da dor, o prurido da coceira, a angústia do ciúme, ou sobre a experiência característica de provar um limão, de cheirar uma rosa, de ouvir um barulho alto ou de ver o céu.

A tese de Jackson ficou conhecida como argumento do conheci‑ mento, já que é o limite do conhecimento de Mary a respeito das características da mente que estaria em questão. Mary sabia tudo o que se podia saber sobre o cérebro, mas não tudo o que se podia saber sobre a mente. Faltava‑lhe o conhecimento acerca das experiências que acompanham a vida mental. Mary conseguia correlacionar processos cerebrais com percepções de “maçãs vermelhas”, mas ela nunca havia experienciado a cor “vermelha”.

Ao sair do quarto e ver uma “maçã vermelha”, Mary percebeu que seu conhecimento neurofisiológico não era o bastante, pois, se o fosse, nada de novo ocorreria com a sua saída. Outro famoso argumento sobre o aspecto dual subjetivo‑objetivo foi proposto por Nagel (1974). Para o autor, o que torna o problema mente‑corpo intratável é a consciência. Um organismo é consciente se é cabível perguntarmos como é ser tal organismo, e “ser”, nesse sentido, é o que caracteriza o aspecto subjetivo da experiência.

Em seu texto, Nagel (1974) afirma que nunca saberemos como é ser um morcego porque nunca seremos capazes de adotar o ponto de vista de um morcego. Os morcegos possuem um sistema perceptivo bastante diferente em relação ao dos seres humanos: eles percebem o mundo externo a partir de “sonares” capazes de circunscrever a geografia do ambiente.

Especificamente, os morcegos emitem ondas sonoras que ao se chocarem com os objetos do ambiente causam ecos. Os ecos, por sua vez, servem como estímulos auditivos a partir dos quais os morcegos podem estabelecer as características geográficas do ambiente. Trata‑se de uma forma de perceber o mundo bastante diferente da nossa e é justamente por isso que Nagel (1974) afirma que nunca saberemos como é ser um morcego, isto é, que nunca saberemos como é ter uma experiência subjetiva de se locomover pelo mundo através do ponto de vista resultante do sistema de sonares dos morcegos.

Poder‑se‑ia indagar, porém, que uma descrição do funciona‑ mento da percepção dos morcegos acabou de ser apresentada, e que isso significa que sabemos como é ser um morcego? Para Nagel (1974), não podemos formar mais do que uma concepção esquemática sobre como é ser um morcego.

Nós estamos presos aos nossos próprios sistemas perceptivos e aos nossos próprios pontos de vista, e é apenas a partir dessa nossa constituição que podemos mera‑ mente imaginar como é ser um morcego. Nagel (1974), por outro lado, está interessado em saber como é ser um morcego sob o ponto de vista de um morcego, e isso, conclui o autor, é impossível. Em suas palavras:

Meu ponto […] não é que nós não podemos ter conhecimento sobre como é ser um morcego. Eu não estou lançando esse problema epistemológico. Meu ponto é, mais precisamente, que até mesmo para formar a concepção de como é ser um morcego (e a posteriori conhecer como é ser um morcego) é preciso adotar o ponto de vista do morcego. (Nagel, 1974, p.442)

O problema do ponto de vista é mais fundamental do que o problema do conhecimento apresentado pelo exemplo da Mary (Jackson, 1982). Antes é preciso estar no mesmo ponto de vista para só assim conhecer o que é ser um morcego. Sem estar no mesmo ponto de vista só podemos tecer concepções esquemáticas, baseadas principalmente em nossa capacidade de imaginar, a partir do nosso próprio ponto de vista, como é ser qualquer organismo consciente.

O exemplo do morcego é um caso extremo, já que o seu sistema perceptivo é notadamente diferente do nosso, mas o problema do ponto de vista persiste até mesmo entre os seres humanos. Talvez possamos imaginar ou conceber como é ser outra pessoa de maneira mais clara ou acurada por conta do fato de que possuímos os mesmos sistemas perceptivos, mas, mesmo assim, nunca poderemos saber como é adotar o ponto de vista daquela pessoa.

É importante ressaltar, nesse momento, o que Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) entende por “ponto de vista”. Ponto de vista, para o autor, não significa o conhecimento privilegiado que temos da nossa própria mente defendido pelo dualismo cartesiano. Não é, portanto, o ponto de vista epistemológico.

Ao que parece, o sentido proposto por Nagel é o de que o ponto de vista é a subjetividade que torna cada organismo único e incapturável por uma análise meramente objetiva, ou até mesmo por uma análise subjetiva a partir dos nossos pontos de vista singulares, isto é, a partir de nossas existências singulares. Aos argumentos de Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) e de Jackson (1982, 1986) foi atribuído um teor dualista, mas não do tipo substancial (e.g., Churchland, 1988/2004; Teixeira, 2000).

Por um lado, ao passo que a negação da completude explanatória do fisicalismo invariavelmente coloca esses autores no patamar do dualismo, já que uma explicação física completa não esgotaria tudo o que concebemos como “mental”, o que significa que deve haver algo mais que o “físico”, por outro lado, esse posicionamento não nos leva necessariamente ao dualismo cartesiano. Assim afirma Nagel (1986/2004, p.45):

A falsidade do fisicalismo não requer substâncias não físicas. Requer apenas que haja coisas verdadeiras sobre os seres conscientes que não possam, dada a sua subjetividade, ser reduzidas a termos físicos. Por que o fato de o corpo possuir propriedades físicas não seria compatível com o fato de possuir também propriedades mentais […]?

Para Nagel (1986/2004, p.26), o mental, assim como o físico, deveria ser visto como um “atributo geral do mundo”. Dessa forma, as ideias de Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) e de Jackson (1982, 1986) originaram o posicionamento denominado dualismo de propriedade, segundo o qual há apenas um mundo, mas um mundo que contém tanto propriedades físicas quanto propriedades mentais.

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REFERÊNCIAS:

A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.