É possível encontrar ao menos três problemas que suposta‑ mente colocariam o behaviorismo filosófico em dúvida. O primeiro deles está no alcance da análise proposta pela teoria: seria possível esgotar o que é a mente através da descrição de comportamentos publicamente observáveis e da utilização da linguagem disposicional? (Place, 1956/2004; Smart, 1959).
O segundo envolve o status ontológico dos termos disposicionais: as disposições não poderiam ser apenas conceitos linguísticos cuja função seria apenas a de sinalizar padrões de comportamento, pois, assim, elas não passariam de entidades fictícias (Lewis, 1966). Seria preciso, então, propor algum fundamento ontológico claro para explicar a existência da mente (Smart, 1994).
O terceiro problema, por sua vez, consiste no fato de que as condições de verificação dos termos mentais, isto é, os comportamentos publicamente observáveis, não constituiriam, necessariamente, a mente, mas sim os efeitos causados por ela: a mente deveria, então, ser vista como algum tipo de estado ou processo interno do sujeito (Armstrong, 1968; Lewis, 1966). Há nessas três questões os principais fundamentos das teorias centralistas.
O termo “centralista” é aqui utilizado de forma abrangente, pois pretende englobar todas as teorias que alocam a mente novamente dentro do sujeito, ao invés de analisá‑la como disposições ou comportamentos manifestos. Nesse contexto, três teorias que satisfazem esse requisito serão apresentadas: a teoria da identidade, o funcionalismo da máquina e o funcionalismo causal. Comecemos pela teoria da identidade.
A ideia básica da teoria da identidade é a de que os estados mentais são estados cerebrais. Especificamente, cada tipo de estado mental corresponde a um determinado estado cerebral. A proposta de Place (1956/2004) e de Smart (1959, 1979, 1994) pode ser analisada como uma resposta aos três problemas do behaviorismo filosófico.
Primeiramente, aceita o fato de que a análise lógico‑linguística do behaviorismo filosófico não esgota o que é a mente (problema 1); em seguida apresenta o fundamento ontológico dos estados mentais a partir das neurociências (problema 2); e, final‑ mente, aloca a mente, enquanto estados cerebrais, dentro do sujeito (problema 3). Nas palavras de Place (1956/2004, p.45):
No caso de conceitos cognitivos como “conhecer”, “crer”, “entender” e “recordar”, e de conceitos volitivos como “desejar” e “intencionar”, não há dúvidas, acredito eu, de que uma análise em termos de disposições para se comportar […] é fundamental‑ mente válida. Por outro lado, parece haver resíduos intratáveis de conceitos agrupados em volta das noções de consciência, experiência, sensação e imagem mental, em que algum tipo de pro‑ cesso interno é inevitável.
Place (1956/2004), além de defender claramente a incompletude do behaviorismo filosófico, também ressalta que os conceitos mentais devem ser tratados como processos internos do sujeito, em vez de meras disposições ou comportamentos manifestos. Mas o que significa dizer que os estados mentais não passam de estados cerebrais? A resposta a essa questão inicia‑se com Smart (1959, p.144):
Deixe‑me primeiramente tentar apresentar de maneira mais acurada a tese de que as sensações são processos cerebrais. Não se trata da tese de que, por exemplo, uma “imagem mental” ou uma “dor” signifiquem o mesmo que “um processo cerebral do tipo X” (em que “X” é substituído por uma descrição de um processo cerebral). É a tese de que, desde que “imagem mental” e “dor” sejam descrições de processos, elas são descrições de processos que, por acaso, são processos cerebrais. Sucede‑se, assim, que a tese não sustenta que afirmações sobre sensações possam ser traduzidas em afirmações sobre estados cerebrais.
Smart (1959) apresenta uma questão bastante importante: a descrição de um estado mental não precisa necessariamente ser passível de tradução para uma descrição de seus estados cerebrais. A teoria da identidade, em contraposição ao behaviorismo filosófico, não está interessada em fazer traduções (Place, 1956/2004; Smart, 1959, 1994).
A ideia central do argumento é relativamente simples: quando um sujeito descreve um estado mental, ele está descrevendo um estado cerebral. Para entender o que isso significa é pertinente discorrer um pouco mais sobre a noção de identidade. É possível atestar uma relação de identidade entre a descrição de um estado mental M e a descrição de um estado cerebral C se, e somente se, ambos possuírem o mesmo referente R.
Tomemos como referente, por exemplo, a “dor”. Suponha‑se que seja possível identificar a “dor” com certos estados cerebrais específicos, C‑dor, e que também seja possível descrevê‑la como “ativação do estado cerebral C‑dor”. Por outro lado, que a “dor” possa ser descrita como um estado mental, especificamente, uma sensação, M‑dor, a partir do ponto de vista do sujeito que diz “estar com dor”.
A descrição da “dor” enquanto estado mental (M‑dor) e enquanto estado cerebral (C‑dor) possuem o mesmo referente: a “dor”. Quando digo que “estou com dor” me refiro à sensação, a qual, por sua vez, também pode ser descrita como “ativação do estado cerebral C‑dor”. Assim, o estado mental não seria nada além de um estado cerebral. Entretanto, ressalta Smart (1959), isso não significa que seja possível fazer uma tradução conceitual dos termos mentais em termos cerebrais.
A identidade implica apenas que ambas as formas de descrição possuem o mesmo fenômeno como referente. A principal constatação da teoria da identidade, portanto, é que formas diferentes de descrição não justificam a existência de fenômenos distintos. A linguagem mental, por mais diferente que seja da linguagem das neurociências, não tem como referente algo além da constituição física do organismo e, nesse contexto, a teoria da identidade estabelece uma agenda de pesquisa empírica: identificar, uma a uma, as relações de identidade entre estados mentais e estados cerebrais (Place, 1956/2004; Smart, 1959).
Nesse momento é importante ressaltar o ponto fraco da teoria da identidade: se encontrarmos apenas um caso em que não seja possível estabelecer relações de identidade entre um estado mental e um estado cerebral, ou em que os mesmos estados mentais possuam referentes cerebrais diferentes, então a teoria da identidade será falsa. Isso se dá porque, por detrás da noção de identidade, há o princípio da correlação.
Nas palavras de Kim (1992, p.4): “para cada tipo psicológico M há um tipo físico P (presumivelmente neurobiológico) único que é nomologicamente coextensivo a ele (i.e., […] qualquer sistema instanciará M em t se, e somente se, esse sistema instanciar P em t)”. O princípio da correlação diz que, para que uma relação de identidade seja possível, todo evento mental M deve sempre ser idêntico a um evento cerebral C. É justamente esse ponto que a tese da múltipla realização do mental ataca. Nova‑ mente com Kim (1992, p.1):
Nós somos constantemente lembrados de que qualquer estado mental, por exemplo, a dor, é capaz de ser “realizado”, “instanciado”, ou “implementado” em estruturas neurobiológicas bastante diversas, em humanos, felinos, répteis, moluscos, e talvez outros organismos mais distantes de nós. Às vezes pedem‑nos para contemplar a possibilidade de que criaturas extraterrestres com uma bioquímica radicalmente diferente da dos terrestres, ou até mesmo dispositivos eletromecânicos, podem “realizar a mesma psicologia” que caracteriza os humanos. Essa tese é para ser chamada daqui em diante de “tese da múltipla realização”.
O argumento da múltipla realização sugere que não há uma relação necessária entre estados mentais e estados cerebrais, sendo impossível sustentar, consequentemente, a tese da identidade. Suponha‑se, por exemplo, que exista um sujeito S e seu gêmeo quase idêntico Sg. Suponha‑se, também, que tanto S quanto Sg são capazes de sentir “dor”, isto é, de terem sensações do tipo M‑dor, descrevendo‑as, inclusive, de forma idêntica através de termos mentais.
De acordo com a teoria da identidade, quando S descreve o estado mental M‑dor ele está descrevendo, na verdade, o estado cerebral C‑dor. O problema surge quando buscamos a referência da descrição de Sg e constatamos que ele não possui o estado cere‑ bral C‑dor: quando diz estar com “dor”, Sg está descrevendo estados cerebrais do tipo X‑dor. Nesse caso, temos estados mentais semelhantes (M‑dor) que se referem a estados cerebrais distintos (C‑dor e X‑dor), situação que é insustentável pelo princípio da cor‑ relação e, assim, pela tese da identidade.
O argumento da múltipla realização tem sua origem no texto de Putnam (1967/1991), que também foi responsável por uma nova forma de analisar a mente: o funcionalismo da máquina. O funcionalismo da máquina proposto por Putnam (1967/1991) fundamentou‑se principalmente na concepção de máquina de Turing (Turing, 1950).
A máquina de Turing seria constituída por uma fita de dados de tamanho infinito, mas de estados finitos, ou seja, estados funcionais discretos; por um processador de informações; e por um cabeçote capaz de ler, apagar e escrever informações na fita, além de poder movimentá‑la. A máquina processaria informações serialmente, com “memória” capaz de recordar qual a função do símbolo que está inscrito na fita e qual o estado da má‑ quina no momento da leitura, podendo, assim, determinar a próxima ação e, consequentemente, o próximo estado funcional da máquina.
A universalidade da máquina de Turing está na possibilidade de imputar nela qualquer algoritmo,5 não havendo, ao menos não em princípio, limites para os tipos de processos que ela poderia instanciar. A consequência imediata da universalidade da máquina de Turing no contexto do funcionalismo da máquina é a seguinte: assim como é possível que o mesmo programa (software) de computador possa ser rodado em máquinas com configurações físicas diferentes (hardware), também é possível que o mesmo “programa mental” possa ser rodado em organismos com configurações físicas diferentes.
Dizemos, então, que a mente é o software e que o cérebro é o hardware, sendo o segundo necessário ao funcionamento do primeiro, o que não significa, porém, que seja idêntico a ele. No caso dos computadores, por exemplo, o programa Windows pode ser rodado em máquinas com diversas configurações de placas‑mãe, discos rígidos, memórias ram, e assim por diante. Portanto, há dois princípios básicos do funcionalismo da máquina: (1) os estados funcionais podem ser realizados em qualquer configuração física; e (2) entender como a mente funciona implica conhecer os estados funcionais que a caracterizam.
O que é possível dizer sobre o segundo princípio? Para responder a essa pergunta analisemos a “dor” como exemplo de estado mental. Para o funcionalismo da máquina, a “dor” seria um estado funcional resultante da relação entre os estímulos que modificam os estados do corpo, entre outros estados funcionais e entre as respostas comportamentais.
No caso dos seres humanos, por exemplo, a “dor de dente” é um estado funcional que está relacionado com a “ativação do estado cerebral C‑dor” a partir de algum tipo de estimulação (dente inflamado) que, por sua vez, pode resultar em certos padrões comportamentais manifestos, tais como ir ao dentista, colocar gelo no dente dolorido, emitir grunhidos, etc. Um extraterrestre poderia instanciar o mesmo estado funcional de “dor de dente”, inclusive apresentando os mesmos padrões comportamentais, mas isso não significa que ele deveria possuir a mesma constituição cerebral (C‑dor).
A “dor”, portanto, não é o estado físico cerebral (no caso dos seres humanos, C‑dor). Os estados físicos são apenas parte da “fórmula”, que também envolve certos tipos de estimulações e certos tipos de comportamentos manifestos. É por isso que a “a dor não é um estado cerebral, no sentido de ser um estado físico‑químico do cérebro (ou até mesmo de ser o sistema nervoso como um todo), mas um tipo de estado completamente diferente” (Putnam, 1967/1991, p.199), e, enquanto tal, “a dor, ou o estado de estar com dor, é um estado funcional do organismo como um todo” (Putnam, 1967/1991, p.199).
A crítica da múltipla realização deixou claro que estados mentais semelhantes podem ser realizados por sistemas com configurações físicas diferentes, o que significa que a teoria da identidade estrita é bastante difícil de sustentar. Todavia, a possibilidade de múltipla realização não invalida o programa empírico dos teóricos da identidade: buscar os correlatos cerebrais dos estados mentais.
Para Smart (1994), o pomo da discórdia entre funcionalismo e teoria da identidade estaria na acusação do primeiro de que, para os teóricos da identidade, dois sujeitos diferentes só estariam num mesmo estado mental se, e somente se, eles estivessem em estados cerebrais idênticos. De fato, essa acusação é pertinente se levarmos em conta o peso lógico da relação de identidade. Haveria, então, outra forma de manter o projeto empírico de buscar os correlatos cerebrais dos estados mentais, mas sem incorrer nos problemas da teoria da identidade? É justamente isso o que propõe o funciona lismo causal de Armstrong (1968, 1977/1991) e Lewis (1966, 1972/1991b, 1980/1991a).
Armstrong (1968) afirma que a teoria da identidade sustentada por Smart e Place não era centralista o bastante. Afinal, esses auto‑ res sustentavam que a análise behaviorista filosófica estava correta quando se tratava de conceitos cognitivos como “crenças”, “desejos”, “intenções” e “conhecimento” (Place, 1956/2004; Smart, 1959). A proposta de Armstrong (1968, p.80) é mais radical: “em oposição a Place e Smart […] eu desejo defender uma explicação centralista [central‑state] de todos os conceitos mentais”.
Nesse caso, todos os estados mentais devem ser vistos apenas como estados centrais internos do sujeito: trata‑se da volta do cartesianismo, exceto pela negação da existência de duas substâncias. Mas o que caracterizaria os estados mentais? Deixemos Armstrong (1977/1991, p.183) responder:
O conceito de estado mental é o conceito de algo que é, caracteristicamente, a causa de certos efeitos e o efeito de certas causas. Que tipo de efeitos e que tipo de causas? Os efeitos causados por um estado mental serão certos padrões de comportamento da pessoa que está no estado em questão. […] As causas do estado mental serão objetos e eventos do ambiente da pessoa.
A essência do funcionalismo causal está nessa citação. Os estados mentais seriam eventos intermediários entre os inputs ambientais e os outputs comportamentais. Basicamente, existiria uma cadeia causal de três elos: input a estado mental a output. Resta‑nos saber, porém, qual seria a estratégia utilizada para relacionar os estados mentais com os estados cerebrais.
De acordo com os defensores do funcionalismo causal (Armstrong, 1968, 1977/1991; Lewis, 1972/1991b, 1980/1991a; Smart, 1994), o primeiro passo é definir um estado mental de acordo com a sua função, isto é, de acordo com o seu papel causal. O segundo passo é buscar os correlatos cerebrais desse estado mental. O último passo, por sua vez, consiste em apresentar uma explicação sobre como os correlatos cerebrais são capazes de preencher o papel causal do estado mental em questão.
Ao fazermos isso acabamos por identificar funcionalmente o estado mental com o estado cerebral. Por exemplo, o estado mental “intenção de ir ao banheiro” pode ser visto, a partir da linguagem mental, como causa do comportamento manifesto de “ir ao banheiro”. No entanto, depois de diversos estudos, neurocientistas descobrem que a causa do comportamento manifesto de “ir ao banheiro” está em certos estados cerebrais específicos.
Assim, através da concordância sobre o papel causal, identifica‑se o estado mental com o estado cerebral em questão. A diferença, em relação à teoria da identidade estrita, é que a identificação dos estados cerebrais e estados mentais é contingencial, isto é, não se sustenta nenhum tipo de necessidade lógica (tal como o princípio da correlação) de que um evento mental M deverá sempre ser idêntico a um evento cerebral C, não importando a circunstância, e independente de quem seja o sujeito.
A identificação é feita a partir do papel causal, o que é plena‑ mente concebível até mesmo pela tese da múltipla realização. Nas palavras de Lewis (1980/1991a, p.231):
Em suma, o conceito de dor tal como entendido por Armstrong e por mim é não rígido. Da mesma forma que a palavra “dor” é um designador não rígido. A aplicação do conceito e da palavra a um estado é um fato contingente. É dependente do que causa o quê. O mesmo vale para o resto dos nossos conceitos e nomes comuns dos estados mentais. […] Se a dor é idêntica a um dado estado neural, a identidade é contingente.
Um robô cuja constituição corporal é de silício em vez de, como os humanos, carbono, pode estar em um estado mental de “dor”, M‑dor, desde que tal estado cumpra o mesmo papel causal dos estados mentais de “dor” nos seres humanos.
Não importa se esse papel causal seja realizado, no final das contas, por um estado físico de silício, S‑dor, em vez de um estado cerebral, C‑dor, já que a caracterização da “dor” estaria na função desse estado e não em suas características físicas.
Mantém‑se, assim, a agenda empírica de pesquisa da teoria da identidade, ao mesmo tempo em que a tese da múltipla realização é respeitada.
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.