Vamos recapitular para não perder o fio. Vimos emergir das pesquisas uma criança que se esforça para compreender a escrita. Que começa diferenciando o sistema de representação da escrita do sistema de representação do desenho. Que tenta várias abordagens globais, numa busca consistente da lógica do sistema até descobrir – o que implica uma mudança violenta de critérios – que a escrita não representa o objeto a que se refere e sim o desenho sonoro do seu nome.
Que nesse momento costuma aparecer uma hipótese conceitual que atribui a cada letra escrita uma sílaba oral. Que essa hipótese gera inúmeros conflitos cognitivos, tanto com as informações que recebe do mundo como com as hipóteses de quantidade e variedade mínima de caracteres construídas pela própria criança. Veja a seguir as amostras de escrita da Cleonilda, do Lourivaldo e do Daniel, de 22/8/84, onde isso aparece com clareza.
As escritas silábica e silábico-alfabética têm sido encaradas como patológicas pela escola que não dispõe de conhecimento para perceber seu caráter evolutivo. Se o professor compreende a hipótese com que a criança está trabalhando, passa a ser possível problematiza-la, acirrar – por meio de informações adequadas – as contradições que vão gerar os avanços necessários para a compreensão do sistema alfabético. E foi isso o que aconteceu com Cleonilda, Lourivaldo e Daniel, como se pode ver nas amostras de escrita de 30/11/84 (na coluna da direita, em cada um dos exemplos anteriores).
Cleonilda, que em 90 dias de aula estava alfabetizada, não é capaz de articular oralmente nenhum encontro consonantal – nem no seu próprio nome. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, das crianças que se alfabetizaram nesse grupo era a que menos erros de escrita cometia. Ela jamais escrevia “comi” para “come”, como o Lourivaldo, que falava corretamente. Reginaldo, como se pode ver no quadro seguinte, pela evolução da cópia de seu nome, não tem orientação espacial da escrita, “come” letras, espelha letras, tem traçado inseguro, é incapaz de manter a ordem das letras na cópia (e tinha dificuldade para segurar o lápis)…
No entanto, os seus problemas perceptivo-motores desapareceram como por encanto, quando ele descobriu o que, exatamente, as letras representavam. Pensem bem, que importância têm a posição ou a ordem das letras, se para nós elas são apenas desenhos? O que esse texto tentou informar em linhas gerais é como é que se aprende a ler. Tentamos mostrar que as dificuldades desse processo são muito mais de natureza conceitual e muito menos perceptual, conforme pensávamos antes. E, como nossa prática se baseava sobre o que sabíamos, é preciso repensá-la, não?
REFERÊNCIAS:
Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.