Quando pensamos em alfabetização, o que nos vem imediatamente à cabeça é a sala de aula, a escola. Até a recente publicação de estudos sobre a história da leitura, todos nós, caso nos perguntassem, responderíamos que sempre foi na escola que se aprendeu a ler. Investigações atuais sobre a história das práticas sociais de leitura estão mostrando que nem sempre foi assim e essa revelação está ajudando a produzir transformações muito interessantes na didática da alfabetização.
O que aparece nas pesquisas dos historiadores é que, muito antes da existência de escolas tal como as que conhecemos, ampliou-se muito o número de pessoas que sabiam ler sem que aparentemente tivessem sido ensinadas. Historiadores como Jean Hébrard verificaram que esta alfabetização, que ninguém compreendia muito bem como acontecia, tinha relação com a instrução religiosa.
No mesmo período histórico em que os livros deixaram de ser produzidos a mão, copiados um a um, e passaram a ser reproduzidos industrialmente, em tipografias – graças à invenção de Gutenberg –, a Europa foi sacudida por um movimento conhecido como a Reforma Protestante. Este movimento foi desencadeado pelo padre alemão Martinho Lutero, que se rebelou contra o Papa e estabeleceu as bases doutrinárias que deram origem às Igrejas protestantes. Uma das mudanças mais importantes era o direito de cada cristão à livre interpretação das Escrituras.
Isto é, o exercício da fé exigia o acesso pessoal ao que estava escrito na Bíblia. Todo cristão tinha o direito e o dever de se esforçar para buscar a palavra de Deus, tentar compreender seus desígnios, através das Sagradas Escrituras, o que então estava se tornando possível, pois as bíblias impressas começavam a estar ao alcance de muitos. Na tradição católica, apenas os religiosos deveriam saber ler. O acesso à palavra de Deus, para os católicos, era mediado pelos padres, que a interpretavam.
Para os protestantes, no entanto, nenhum intérprete autorizado, nenhuma tradição poderia se interpor entre o crente (“mesmo se é uma miserável filha de moleiro, ou mesmo uma criança de 9 anos”, escreveu Lutero) e as Escrituras. Jean Hébrard conta que, no século XVII, na Suécia e na Finlândia, países de forte presença luterana, praticamente toda a população era alfabetizada sem que existissem escolas elementares. Como é possível uma coisa dessas se hoje, mesmo com escolas, temos tanta dificuldade para alfabetizar todas as nossas crianças? Em primeiro lugar, não havia uma preocupação específica com a alfabetização, e sim com a catequese.
O que importava era a instrução religiosa. Mas não são só os cristãos que têm escrituras sagradas. Também os judeus e os muçulmanos as têm. O estudo da Torá pelos judeus e do Alcorão pelos maometanos também tem muito a nos contar sobre práticas não escolarizadas de alfabetização. E é com o estudo dessas práticas que a didática da alfabetização tem aprendido coisas importantes. Tanto o estudo da Bíblia como o da Torá judaica, bem como o do Alcorão, tinham em comum o fato de que se lia, ou melhor, se recitava o texto sagrado em voz alta até sua memorização.
Saber o texto de cor e procurar no escrito onde está o que se fala parece ter cumprido um papel fundamental na difusão dessa alfabetização sem escola, uma alfabetização cujo sucesso era atribuído a uma espécie de iluminação de origem divina. Quando a alfabetização passou a ser assunto escolar, a prática de colocar os que não sabem ler diante de um texto desapareceu. Hoje nós a estamos recuperando, porque podemos compreendê-la em seus fundamentos psicopedagógicos e adaptá-la às nossas atuais necessidades.
É claro que não estamos propondo obrigar as crianças a decorar enormes textos e recitá-los até não aguentar mais. Mas o fato de compreendermos que essa situação produzia um excelente espaço para a reflexão sobre o modo de funcionamento da escrita tornou possível adaptá-la à nossa realidade. Assim, têm sido criadas diversas atividades de leitura apoiadas em textos e dirigidas às crianças que ainda não sabem ler. Algumas delas estarão entre as sugestões de atividades que você vai encontrar mais à frente.
REFERÊNCIAS:
Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.