Como as Crianças Aprendem a Ler e a Escrever?

Como as Crianças Aprendem a Ler e a Escrever?As pesquisas têm demonstrado que o cérebro humano não foi biologicamente programado para aprender a ler e a escrever – a linguagem escrita é uma invenção recente na história humana –, mas é capaz de se modificar em função das aprendizagens (SCLIAR-CABRAL, 2013). Esse mecanismo de adaptação da estrutura cerebral se denomina plasticidade neuronal (DEHAENE, 2012).

O cérebro tem de modificar-se para que seja possível aprender a ler e a escrever, reciclando as mesmas áreas cerebrais que os homens da Pré-História usavam para caçar e coletar. Aprender a ler e a escrever faz criar no cérebro um caminho que liga as áreas de processamento fonológico com as de processamento visual, de modo que uma palavra, quando é vista, ativa no cérebro as mesmas áreas que uma palavra quando é ouvida. A teoria psicolinguística da amalgamação explica esse processo.

Quando alguém aprende a falar, aprende diferentes aspectos ou identidades das palavras: seus sons (identidade fonológica), seus significados (identidade semântica), seus usos em sentenças (identidade sintática) e seus usos sociais (identidade pragmática). Todas essas identidades ficam armazenadas numa espécie de amálgama, ou seja, numa fusão perfeita em que todas as partes formam uma única peça final, uma representação da palavra na memória.

Quando se aprende a ler e a escrever, aprende-se um novo aspecto das palavras, a sua representação ortográfica (identidade ortográfica), que se funde de tal maneira às demais identidades que qualquer uma pode ativar as outras reciprocamente (EHRI, 2005, 2013, 2014). As pesquisas em neurociências indicam que existe uma área do cérebro que passa a especializar-se no reconhecimento das letras quando se aprende a ler e a escrever.

 É a chamada Área da Forma Visual das Palavras (AFVP), situada na região occipitotemporal esquerda, correspondente a uma área atrás da orelha esquerda, onde se conectam as regiões de processamento visual com as regiões de processamento fonológico e, por isso, é ideal para responder ao processo de leitura e de escrita. Nas pessoas que ainda não aprenderam a ler e a escrever, a AFVP responde prioritariamente ao reconhecimento de faces e de objetos.

Contudo, quando se aprende a ler e a escrever, não importa a idade, essa área se modifica por meio da reciclagem neuronal, o que permite os processos de leitura e de escrita (DEHAENE, 2011, 2012). A teoria de fases do desenvolvimento da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos, formulada por Linnea Ehri (2013, 2014), descreve a progressão na aprendizagem da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos, como é o caso do português. Ehri distingue quatro maneiras de ler palavras: por predição, por analogia, por decodificação e por reconhecimento automático.

Maneiras de Ler Palavras:

Predição: é a maneira mais simples de ler palavras. Tenta-se “adivinhar” a palavra escrita por meio do contexto (por exemplo, cores, formas, imagens) ou pela presença de alguns elementos conhecidos, como as letras iniciais. É utilizando essa estratégia que crianças muito pequenas são capazes de “ler” nomes de produtos, marcas ou empresas em rótulos, outdoors e placas. Leitores proficientes também podem usar a predição para descobrir uma palavra incompleta: por exemplo, na frase “no hospital há muitos médicos e en…”, o contexto pode levar à suposição de que se trata de “enfermeiros” ou de “enfermos”.

Analogia: é uma maneira um pouco mais precisa de ler palavras. Envolve o reconhecimento de palavras por meio da associação com partes (rimas, por exemplo) de outras palavras familiares. A criança que aprende a ler “gato” pode, por analogia, ler as palavras “rato”, “mato” e “pato”.

Decodificação: é a maneira mais precisa de ler palavras e leva à automatização. É também a melhor estratégia para ler palavras novas e permite a leitura autônoma de palavras desconhecidas. Envolve o conhecimento das relações grafema-fonema para identificar o fonema correspondente a cada grafema, aglutinandoos em pronúncias que formam palavras reconhecíveis. Contudo, quando a correspondência entre grafemas e fonemas em uma palavra não é biunívoca, o leitor iniciante poderá ter dificuldade para extrair a pronúncia correta.

Reconhecimento automático: depois que uma palavra é lida várias vezes, armazena-se na memória e passa a ser reconhecida imediatamente, sem a necessidade de estratégias intermediárias como a predição, a analogia e a decodificação. É a maneira mais eficiente e menos custosa para a memória, permitindo que o leitor leia com rapidez e prosódia, faça inferências e compreenda frases e textos.

Durante a aprendizagem da leitura, a criança utiliza diferentemente essas quatro maneiras de ler palavras. Ehri (2005, 2013, 2014) identificou quatro fases do desenvolvimento da leitura e da escrita, que refletem o conhecimento e o uso que a criança faz do sistema de escrita. Isso quer dizer que o que a leva a passar de uma fase para a outra é o conhecimento e o uso que faz do código alfabético, isto é, das relações entre letras e sons.

As Fases do Desenvolvimento da Leitura e da Escrita

Fase pré-alfabética: a pessoa emprega predominantemente a estratégia de predição, usando de início pistas visuais, sem recorrer às relações entre letras e sons; lê palavras familiares por reconhecimento de cores e formas salientes em um rótulo, mas é incapaz de identificar diferenças nas letras; pode ainda conseguir escrever algumas palavras de memória.

Fase alfabética parcial: a pessoa faz analogias, utilizando pistas fonológicas; depois de aprender os sons das letras, ela começa a utilizá-los para ler e escrever palavras.

Fase alfabética completa: depois de conhecer todas as relações entre grafemas e fonemas e adquirir as habilidades de decodificação e de codificação, a pessoa passa a ler e a escrever palavras com autonomia.

Fase alfabética consolidada: nesta fase de consolidação contínua ocorre o processamento de unidades cada vez maiores, como sílabas e morfemas, o que permite a pessoa ler com mais velocidade, precisão e fluência, e escrever com correção ortográfica.

Um bom leitor é aquele que identifica palavras com precisão, fluência e velocidade, dentro e fora de textos (EHRI, 2014). O objetivo da leitura é a compreensão. Nós lemos para compreender, mas ler não é compreender. Para compreender textos, é necessário desenvolver diferentes habilidades e capacidades relacionadas à compreensão da linguagem e ao código alfabético (MORAIS, 2013).

O modelo de cordas de Hollis Scarborough (2001) ilustra bem o processo do qual depende a compreensão de textos. Para ler um texto com compreensão, é preciso adquirir várias habilidades. Algumas delas não necessitam de instrução explícita e sistemática, como conhecimento de mundo, conhecimento morfossintático, raciocínio verbal e familiaridade com livros e outros materiais impressos.

Outras exigem ensino explícito, como a consciência fonêmica e a decodificação de palavras – da qual resulta o reconhecimento automático de palavras. Essas habilidades vão-se unindo gradualmente como fios numa corda, e assim a leitura se torna cada vez mais proficiente. Com a automatização das habilidades de reconhecimento de palavras é liberado espaço na memória para os processos de compreensão.

FONTE:

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização. – Brasília : MEC, SEALF,2019.