Transtorno de estresse pós-traumático em crianças

O transtorno de estresse pós-traumático1 (TEPT) é um problema de saúde mental decorrente da vivência com eventos de vida traumáticos. Apenas em 1980 foi introduzido como transtorno à saúde mental (APA, 2002). Inicialmente foi reconhecido como um problema de saúde que acometeria apenas adultos. Posteriormente, crianças e adolescentes foram reconhecidas como possíveis vítimas.

Desde então, busca-se entender as diferenças e similaridades observadas nestes ciclos de vida, especialmente porque crianças e adolescentes processam diferentemente os estímulos do meio, devido ao estágio de desenvolvimento cerebral e cognitivo em que se encontram, bem como pela relevância fundamental dos fatores familiares, genéticos e ambientais nestas fases da vida (Rojas; Lee, 2004). Para se diagnosticar TEPT em crianças, é necessário que (APA, 2002):

Haja exposição a um evento traumático em que:

  • a criança vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados, ou uma ameaça à integridade física, própria ou de outros;
  • a resposta da criança envolveu intenso medo, impotência ou horror, frequentemente manifestado em crianças através de comportamento desorganizado ou agitado.

O evento traumático é persistentemente revivido pela criança em uma (ou mais) das seguintes maneiras:

  • recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens, pensamentos ou percepções – nas crianças pequenas, podem ocorrer jogos repetitivos, com expressão de temas ou aspectos do trauma;

Até hoje, ela com oito anos, ela não esqueceu. Ela ainda revive tudo aquilo. De vez enquanto que aquilo passa igual a uma novela. Ela lembra, ela começa a comentar, fazer aqueles comentários, e eu começo sempre a tentar tirar isso da cabeça dela. Foi uma situação assim, muito difícil, muito difícil para a Nádia mesmo. Eu acho que isso daí foi a pior coisa que aconteceu na vida dela. Ela sofreu muito. […] Mas vira e mexe, é como eu estou te falando, entendeu? É como se fosse um filme. Tudo vem na cabeça dela, entendeu? Aí ela fica… Ela fica agitada, fica com medo, entendeu? Não fala com as pessoas direito.

Mãe de Nádia, 8 anos, sintomas de ansiedade e de TEPT, testemunhou violência policial sobre o pai e violência entre pais.

  • sonhos aflitivos e recorrentes com o evento, podendo ocorrer sonhos amedrontadores sem um conteúdo identificável;

Depois que ficou maiorzinha, é que tem crises de pesadelo, então ela grita de noite mesmo. Mãe da Lara, 8 anos, sintomas de TEPT, doenças graves/morte na família, crise nervosa e agressão física da avó ao pai Ele começou a ter pesadelos comigo, dizendo: “mãe, eu sonhei que você morreu; mãe, eu sonhei que você… aconteceu isso com você; mãe”… Mãe de Leonardo, 8 anos, sintomas de TEPT, vivenciou incêndio, sofreu violência na comunidade e na escola, testemunhou acidente sofrido pela mãe Diz ela, que tem uns sonhos assim, que ela corre do quarto pra vir pro meu quarto. Ela diz que sonha muito com o bicho ruim, com essas coisas, que está vindo pegar o irmão dela. Nessas semanas, quando acontece esse tipo de sonho com ela, ela fica assim… Nadia fica desnorteada. Ela fica nervosa, fica preocupada.

Mãe de Nadia, 8 anos, sintomas de ansiedade e de TEPT, testemunhou violência policial sobre o pai e violência entre pais

  • agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente (inclui um sentimento de revivência da experiência, ilusões, alucinações e episódios de flashbacks dissociativos). Crianças pequenas podem reencenar o trauma;
  • sofrimento psicológico intenso quando exposta a algo que simboliza ou lembra algum aspecto do evento traumático;

Nádia depois ficou muito traumatizada. Ela não podia ver um carro de polícia, ela não podia ver um carro estranho entrando na rua, porque ela ficava apavorada, ela começava a fechar a porta, a fechar a janela, e começava a ficar chorando o tempo inteiro, querendo o pai, por que ela já achava que iria acontecer tudo de novo, tudo novamente.

Mãe de Nádia, 8 anos, sintomas de ansiedade e de TEPT, testemunhou violência policial sobre o pai e violência entre pais.

  • reatividade fisiológica quando exposta a algo que simboliza ou lembra algum aspecto do evento traumático;

E dali pra lá, ele começou assim, dor de cabeça, aí deu febre algumas vezes nele e ele começou ter visões, sonhos. Ele começou reagir dessa forma.

Mãe de Leonardo, 8 anos, com sintomas de TEPT e vivência de acidente grave, violência na comunidade e escola.

Eu perdi meu irmão tem um ano. Depois que isso aconteceu ela estava, andou mijando na cama, parou. Uma coisa assim. Não era todo dia, às vezes. Agora, essa semana que passou eu peguei ela chorando. Chorando, mas ela disfarçou, o olho dela descia lágrima… Falei assim: – Filha, você está chorando? Era por volta de oito da noite. Você está chorando? Aí, ela foi e falou: “não, eu estou chorando, porque eu estou me lembrando do meu tio”. Aí eu falei: quando você sentir vontade de falar dele, você fala comigo. […] Aí, eu perguntei:

você fica sempre triste assim? Sempre quando você está triste, é por causa disso? Ela disse que era, entendeu? E eu não sabia. Porque até antes quando vim aqui, eu estava achando, não tinha certeza. […] Ela pegou e falou: “eu às vezes, quando fico triste é por que eu fico lembrando dele. Porque ele era uma pessoa boa para mim”. Ela falou… se expressou assim, não é? Ele era bom, realmente, ele era muito carinhoso com ela, muito… Aí, sonha, sonha…

Mãe de Renata, 8 anos, sintomas de TEPT, vivenciou a morte de tio por acidente, violência severa sobre a mãe, doença grave de familiar.

Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da capacidade de reação (não presente antes do trauma). Para diagnosticar TEPT, é necessária a presença de três (ou mais) dos seguintes quesitos:

  • esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas com o trauma;
  • esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do trauma;

Ela fica agitada, fica com medo. Não fala com as pessoas direito. Se chegar uma pessoa na minha casa, principalmente se for uma pessoa do sexo masculino, se for uma pessoa assim, que ela não conhece, ela não chega nem perto. Mãe de Nádia, 8 anos, sintomas de ansiedade e de TEPT, testemunhou violência policial sobre o pai e violência entre pais Ela chorou e falou que não queria mais vir pra escola, até hoje ela estava pedindo pra tirar ela do colégio, que ela quer mudar de escola.

Mãe de Valéria, 9 anos, sintomas de ansiedade e TEPT, vivenciou enchente grave, violência na localidade, doenças e mortes na família, foi hospitalizada, passou por “corredor da morte” na escola, sendo agredida fisicamente.

  • incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma;
  • redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas;
  • sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas;
  • faixa de afeto restrita (p.ex., incapacidade de ter carinho);
  • sentimento de um futuro abreviado (p.ex., não espera ter uma carreira profissional, casamento, filhos ou um período normal de vida).

Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada (não presentes antes do trauma). São necessários dois (ou mais) dos seguintes quesitos para o diagnóstico: dificuldade em conciliar ou manter o sono; irritabilidade ou surtos de raiva; dificuldade em concentrar-se; hipervigilância; resposta de sobressalto exagerada.

O diagnóstico de TEPT só se dá quando a duração dos sintomas é superior a um mês e caso provoque sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social da criança. Nem sempre é possível diagnosticar TEPT em crianças a partir de todos estes critérios preconizados pela DSM-IV. Autores alertam que crianças informam pouco sobre oito sintomas de TEPT, dentre os dezoito normatizados na DSM-IV.

Isto se daria pela exigência de descrição verbal da experiência traumática e do estado interno vivenciado pela criança (Scheeringa et al., 2006). Por essa razão, é importante avaliar crianças com sintomas de TEPT, mesmo que elas não alcancem todos os critérios exigidos na DSM-IV.

Uma enorme variedade de sintomas é concomitante ao TEPT em crianças, complexificando ainda mais o diagnóstico: prejuízo na modulação do afeto; comportamento autodestrutivo e impulsivo; sintomas dissociativos; queixas somáticas; sensações de inutilidade, vergonha, desespero ou desamparo; sensação de dano permanente; perda de crenças anteriormente mantidas; hostilidade; retraimento social; sensação de constante ameaça; prejuízo no relacionamento com os outros; ou mudança nas características anteriores da personalidade do indivíduo.

O transtorno de estresse após o trauma pode ser agudo e crônico. Ambos têm sintomas similares, porém:

  • TEPT agudo: quando a duração dos sintomas é inferior a três meses. (e superior a um mês).
  • TEPT crônico: a duração dos sintomas é igual ou superior a três meses.

Embora os sintomas de TEPT costumem iniciar nos três primeiros meses após o trauma, pode haver um lapso de meses ou mesmo anos antes do seu aparecimento (APA, 2002; Range; Masci, 2001). Quando isto acontece, denomina-se TEPT de início tardio, com tempo mínimo transcorrido entre o evento e o início dos sintomas de seis ou mais meses.

É preciso ter cautela ao determinar o retardo do aparecimento dos sintomas, pois pode haver precária e retardada percepção dos pais sobre os sintomas apresentados por seus filhos, especialmente quando mais novos. A comorbidade é altamente frequente em crianças com TEPT. Depressão é um dos transtornos mais comumente associados, junto com outros transtornos de ansiedade (pânico, agorafobia, transtorno obsessivo-compulsivo, fobia social, transtorno de ansiedade generalizada) e abuso de substâncias.

Os transtornos externalizantes (hiperatividade/déficit de atenção, transtornos de conduta e transtorno opositivo desafiador) são também frequentes.

Violência urbana e ansiedade de Mariana

Mariana tem 9 anos de idade e sempre foi muito “recatada”, como sua mãe costuma descrever. Tem vergonha de conversar com as pessoas mais velhas e até mesmo com os coleguinhas da escola. A professora já conversou com a mãe de Mariana sobre o isolamento da filha e como ela não participa muito das brincadeiras de turma.

A mãe, Carla, acha natural a filha ser assim, afinal de contas toda a família tem esse mesmo jeito e ela própria costuma dizer que não gosta de pessoas com jeito muito escandaloso. O pai não participa muito porque está sempre trabalhando e quando chega em casa a menina já está dormindo. Um dia, durante uma entrada da polícia na comunidade que Mariana mora, houve muito tiroteio, quando ela estava vindo da igreja e indo para casa com seus pais. Eles tiveram que se jogar no chão, passando por momentos de muito medo. Mariana ficou muito agitada e horrorizada. Felizmente saíram ilesos fisicamente, apenas com alguns arranhões. Mesmo meses após o evento, Mariana ainda tinha pesadelos sobre o tiroteio e às vezes pesadelos sobre monstros. Acordava com muito medo e ia para a cama dos pais. Eram pesadelos muito frequentes que perturbavam o sono de Mariana e de seus pais. E começou a ser alvo de preocupação de sua mãe, que não sabia mais o que fazer. Mariana passou a querer evitar as ruas centrais da comunidade, principalmente a rua que aconteceu o tiroteio. Agora queria sempre fazer o trajeto mais longo para a escola. Quando tinha que fazer algo nessa rua, ficava suada, com as mãos frias, sofrendo muito por ter que usar tal caminho. Era um grande custo para ela e sua mãe alterarem tanto o caminho de ida para a escola. No início a mãe tentou forçar Mariana a seguir o trecho que estavam habituadas, mas percebia que a filha ficava em pânico e mudou seu trajeto para entrar e sair da comunidade. Carla percebeu que Mariana passou a não brincar mais de boneca e nem assistir televisão como fazia antes. E ela que sempre foi muito estudiosa, vinha tirando notas baixas, sem interesse nenhum nos estudos. Além disso, estava sempre muito irritada e assustada. Qualquer barulho parecido com tiros, ela tomava um susto, e procurava um local protegido chorando. Carla estava muito preocupada e procurou insistentemente um psicólogo para a filha. Mas não encontrou vaga nos serviços perto de sua casa. Já tinha desistido de atendimento, quando a filha adoeceu, teve uma gripe com febre muito elevada e persistente, precisando recorrer ao pediatra no posto de saúde. Durante a consulta, a mãe estava muito triste, muito reticente nas respostas e a pediatra notou seu desalento. Perguntou se havia algum outro problema. Até que Carla desabou a chorar e contou como a filha estava nos últimos meses. Após avaliar a criança e fazer algumas perguntas sobre o comportamento de Mariana, a pediatra achou por bem conversar com a psicóloga do posto para pensar numa forma de conseguir atendimento rápido para Mariana. Para ser avaliada por um psiquiatra a fila de espera seria de no mínimo seis meses.

Dentre os sintomas de TEPT manifestados pelas crianças da rede pública de São Gonçalo, constatamos no gráfico 5 os sintomas mais frequentes: distração; muita argumentação, comportamentos agressivos; medo, ansiedade e nervosismo em excesso. Dentre os sintomas menos frequentes estão algumas queixas somáticas e não conseguir tirar alguns pensamentos da cabeça.

Transtorno de estresse pós-traumático em crianças

Na fala dos responsáveis entrevistados, a irritabilidade e crises de raiva dos filhos costumam ser relacionadas a algumas situações adversas marcantes em suas vidas:

Sempre foi um garoto agitado, debochado, é nervoso. […] Não era quando bebê, não. Ele só ficou agitado quando via eu e o pai dele discutindo. Só ai ficou agitado com a separação aí de lá pra cá.

Mãe de Felipe, 8 anos, sintomas de ansiedade e TEPT, testemunha agressão física severa do pai à mãe, sofre agressão física severa dos pais, foi hospitalizado, vivenciou desabamento grave, viu assassinatos e vivenciou violência na comunidade.

Outros problemas emocionais e comportamentais estiveram presentes em todas as crianças com sintomas de TEPT. Muitas vezes, estes comportamentos eram as principais fontes de preocupação dos responsáveis, surgindo com ênfase nas entrevistas: outros transtornos ansiosos, depressivos, comportamentos agressivos, dificuldades de aprendizagem e de contato social com outras pessoas.

Tristeza

Ele é triste […] Você sente a tristeza nele. Até as professoras mesmo pegaram ele ontem na sala e falaram: “ele é muito triste sabe?” […] Tem uma vizinha minha ao lado que fala: “Ah! Esse meu netinho é meu netinho, mas ele é muito triste”. Às vezes abraça, dá carinho a ele. Eu acho ele muito diferente das outras crianças no quintal. […] Porque ele é muito assim, triste. Às vezes você chega, ele está sentado assim do lado de fora, perguntei: está tudo bem? Ele: “está tudo bem”. Você está sentindo alguma coisa? “Não mãe, está tudo bem”. Mas você percebe a tristeza dele.

Mãe de Lauro, 11 anos, sintomas de TEPT, vivenciou acidente com feridos, testemunha de assalto na comunidade, familiar com doença grave, foi hospitalizado.

Timidez

Ela é muito fechada, apesar de ser amorozinha assim, ela é muito fechada. Eu não tenho acesso. Às vezes eu pergunto, tento conversar com ela… Vamos conversar com mamãe. Como é que foi e tal. E ela não se abre… “Ah! Foi legal”. Toda vez que ela sai de casa. Ih! Como é que foi a aula? “Foi boa”. Aí eu tento indagar, então ela não conversa. De vez em quando ela está vendo televisão, ela fica triste, a gente pergunta o que é, ela diz que não é nada, mas ela não se abre.

Mãe de Valéria, 9 anos, sintomas de ansiedade e TEPT, vivenciou enchente grave, violência na localidade, doenças e mortes na família, foi hospitalizada, passou por “corredor da morte” na escola, sendo agredida fisicamente.

Agressividade

O relacionamento dele é meio complicado, briga muito com os coleguinhas. É uma criança que eu tenho que estar atenta sempre. Às vezes ele quer brincar na rua, aí eu tenho que ter um tempo disponível pra eu olhar, porque ele costuma ter um pouco de atrito contra os amigos da escola… Leonardo costuma me dar mais problema. […] Então o que aconteceu, o Leonardo apanhou, apanhou a alfa inteira, quando chegou no meado da primeira série, o Leonardo começou a agredir. Aí eu comecei a ser chamada, porque de agredido ele passou a ser agressor, entendeu? Aí eu estava… a dificuldade do Leonardo começou aqui, com relacionamento na escola

Mãe de Leonardo, 8 anos, com sintomas de TEPT e vivência de acidente grave, violência na comunidade e escola

REFERÊNCIAS:

Assis, Simone Gonçalves de Ansiedade em crianças: um olhar sobre transtornos de ansiedade e violências na infância / Simone Gonçalves de Assis; Liana Furtado Ximenes; Joviana Quintes Avanci; Renata Pires Pesce. — Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ENSP/CLAVES/CNPq, 2007. 88p. (Série Violência e Saúde Mental Infanto-Juvenil)