EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA: QUANDO A PSEUDONEUTRALIDADE EXPRESSA UMA OPÇÃO PELA NATURALIZAÇÃO DAS DESIGUALDADES

Meire Donata Belzer– SEED-PR  

Paulla Helena Silva de Carvalho – UFPR/ SEED-PR

Elisane Fank – SEED-PR

 

EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA: QUANDO A PSEUDONEUTRALIDADE EXPRESSA UMA OPÇÃO PELA NATURALIZAÇÃO DAS DESIGUALDADESResumo

Reportagens recentes veiculadas por alguns jornais locais têm se proposto a tecer suas críticas ao conteúdo ideológico de alguns livros didáticos utilizados nas escolas brasileiras e à formação dos profissionais da educação, especialmente no que se refere à abordagem pedagógica marxista. Em nome de uma pseudoneutralidade os colunistas julgam ser possível vislumbrar uma escola que não veicule a ideologização em seus currículos. Contudo, a não neutralidade é uma condição humana, a partir do momento em que o homem, na necessidade de criar meios para sua sobrevivência, age de forma intencional sobre a natureza, transformando-a e humanizando-se. Esta dimensão ontocriativa do trabalho se define na existência humana e, como tal, na educação. Nesta perspectiva, este artigo se propõe a analisar os elementos conceituais, sobre os quais é possível questionar e fundamentar em que medida a intencionalidade é condição pedagógica e a ideologia é inerente a ela. Da mesma forma como os próprios conteúdos dos jornais já trazem consigo uma dimensão ideológica, a relação homem, trabalho, educação e natureza é intencional, jamais poderá ser neutra.

Introdução

Em textos recentes a mídia impressa se ateve em fazer uma espécie de ataque apaixonado contra qualquer tipo de ideologização na escola, seja ele veiculado aos livros didáticos ou mesmo, de forma indireta, na formação dos pedagogos. A abordagem presente nestes textos caminhou para o que se pode concluir como um tipo de apologia a uma possível ‘neutralidade’ pedagógica.

Em algumas reportagens, a principal bandeira da crítica foi, em especial, o conteúdo marxista presente na formação dos educadores, nos livros didáticos e nos currículos escolares. Um dos exemplos que se pode destacar, a priori, é a reportagem de um jornal paranaense, a Gazeta do Povo, de setembro de 2007, que se preocupou em tentar desvelar o que chamou de conteúdo ideológico das publicações que se destinam às escolas e à formação dos nossos filhos e alunos.

Pais e estudiosos do assunto têm questionado o conteúdo político-ideológico de algumas publicações usadas nas escolas públicas e particulares. Textos com teor altamente ideologizado foram identificados nas últimas semanas em publicações distribuídas aos milhares pelo Ministério da Educação em todo o país, ou em casos de livros didáticos de História e Geografia em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (…).

Em outra reportagem do mesmo jornal, publicada em fevereiro de 2009, o filósofo colunista, em ironias não contidas, chega a rotular a formação dos pedagogos, ainda que com relações linares entre concepção e autores. Segundo ele:

[…] tudo continuou e continuará como dantes no quartel de abrantes. A razão é dupla: por um lado, temos uma casta de pedagogos marxistóides erigindo altares a Paulo Freire e suas esquerdopatias no currículo e nas escolas do país. Por outro lado, temos a própria visão de mundo marxista, que vê a doutrinação nas escolas como nobre, bela e verdadeira

Recentemente um manual, anexado à Revista Exame (nº 951) – de circulação nacional – intitulado “O que você pode fazer pela educação da sua cidade – ideias para você e sua empresa investirem na melhoria do ensino”, traz a seguinte chamada:

Ofereça sua Experiência em Gestão: Uma das principais contribuições que você pode dar para a Educação é oferecer sua experiência em gestão às escolas e à Secretaria de Educação da sua cidade ou estado. Gestão empresarial é diferente de gestão escolar. Por isso, você pode procurar especialistas em Educação para ajudá-lo a adaptar métodos de gestão empresarial à realidade das escolas e Secretarias de Educação. Seja ativo, mas não se imponha: chegar mandando só atrapalha. Ouça todos os envolvidos no processo escolar para chegar a um consenso sobre a melhor forma de atuar. Certifique-se de que sua colaboração está de acordo com os interesses locais e trará resultados concretos. Reúna-se com dirigentes escolares da sua região e troque ideias com eles sobre melhores práticas de gestão. Você pode encontrar resistências. Se isso acontecer, explique a todos as vantagens de uma administração responsável e voltada para resultados. Eis alguns exemplos de assuntos que empresas dominam e que podem ser úteis para escolas e Secretarias: Técnicas de liderança e motivação, Gerenciamento de equipe, Plano de metas e administração por resultados, Organização e método; Planejamento orçamentário, Gerência de projetos e Importância de avaliações.

Embora este artigo não tenha como pressuposto fazer uma análise das apologias midiáticas a uma (pseudo) neutralidade, elas são aqui tratadas como ponto de partida para analisar em que medida a própria condição e ação humana, em sua dimensão ontológica, já carregam consigo uma intencionalidade que, em tese, descarta qualquer possibilidade de neutralidade. O que de não ideológico se apresenta na chamada acima? Seria, portanto, possível a escola não ser ideológica, estando ela situada nas contradições do mundo contemporâneo ou mesmo nas próprias relações de trabalho? De que forma a relação homem, trabalho e educação define ou tem definido o seu caráter ideológico?

A alusão a uma possível neutralidade já não estaria trazendo consigo um caráter assumidamente ideológico? Questionamentos estes que, pelo objetivo do texto, se colocam como pano de fundo para uma reflexão sobre o desenvolvimento do homem, do trabalho e a relação destes com a escola e os processos de escolarização formal.

Para efeitos desta discussão filosófica entre educação e trabalho, o ponto inicial das análises não poderá ser outro senão as próprias reflexões marxianas sobre o assunto e as proposições educativas com base neste referencial teórico, ou seja, a pedagogia progressista em oposição à escola capitalista.

Para tanto, neste campo de estudo, além de Marx (1996) e Engels (2004) serão abordados outros autores, dentre eles: Braverman (1987), Antunes (1999), Leontiev (2004), Vygotsky (1998), Kuenzer (1995), Enguita (1987), Silva (2004), Kroupskaia (1977), Snyders (2005), Gramsci (1989/ 1991/ 2004).

Processo de humanização do homem e sua dimensão da não neutralidade

Uma das passagens de Marx, em sua obra “O Capital”, traz a comparação entre a construção da colmeia pela abelha e a de uma casa por um arquiteto. Nesta analogia ele se preocupou em diferenciar o caráter de intencionalidade da ação humana em relação à da abelha.

Segundo ele, por pior que seja, o homem realiza o seu trabalho de forma mais elaborada, uma vez que antes de iniciá-lo havia concebido em sua mente, ao passo em que os animais o fizeram de forma instintiva, sem possibilidades de idealizar o que se almejou de antemão.

Este caráter inegável de intencionalidade da ação humana define, em especial, a relação entre o homem e natureza. Ao agir sobre a natureza o homem, segundo Marx (1996), por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo. “Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (1996, p.297).

Esta ação consciente e intencional é mediada pelo trabalho. Portanto, o trabalho em si já carrega consigo uma ação, segundo Braverman (1987), consciente e proposital, a qual diferentemente dos animais, não se dá de forma instintiva. Podemos inferir que o trabalho é para o homem parte constitutiva de seu ser.

Neste sentido, Lukács explicita a dimensão ontológica do trabalho, a qual é atribuída por Antunes como categoria intermediária que possibilita o salto das formas pré-humanas para o ser social, que em sua essência está no centro do processo de humanização do homem.

Em seu texto, escrito em 1876, “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, Engels explica as descobertas de Darwin sobre os macacos antropomorfos da região do Oceano Índico. Em sua forma primitiva, os macacos utilizavam as mãos, chegando a assumir a postura ereta para andar.

É de supor que, como consequência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses macacos foram se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e começaram a adotar cada vez mais uma posição ereta. Foi o passo decisivo para a transição do macaco ao homem (ENGELS, 1876, p.16).

Em um primeiro momento a utilização das mãos ocorreu de forma circunstancial e a posição ereta caracterizou-se numa necessidade para a própria preservação da espécie. Ainda que sejam estes movimentos extremamente simples, segundo Engels (1876, p.16) “já havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração”.

As transformações constantes eram transmitidas aos descendentes que continuavam aperfeiçoando em quantidade e em qualidade a utilização das mãos. Desta forma, ao longo do tempo, foi possível desenvolver a musculatura e a ossatura da espécie para que esta, progressivamente, aumentasse o grau de destreza dos movimentos.

As novas habilidades das mãos forçosamente fizeram com que os demais órgãos do corpo primitivo também se desenvolvessem, mostrando desta forma, uma correlação entre os órgãos:

O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exerceram indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certa influência sobre partes do organismo (ENGELS, 2004 p.17).

Para tal feito, o cérebro – órgão com maior grau de importância – aumentou de tamanho aperfeiçoando suas funções e a percepção do mundo. Assim sendo, é possível concluir, segundo Leontiev, que:

O aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condição primeira e fundamental da existência do homem, acarretaram a transformação e a hominização do cérebro, dos órgãos de atividade externa e dos órgãos dos sentidos (s.d., p.76).

As alterações anatômicas e fisiológicas contribuíram para que os homens em formação desenvolvessem formas de ajuda mútua para suprir as condições de sobrevivência. A realização de atividades conjuntas colaborou para aproximar ainda mais os membros do grupo.

Contudo, era necessário que o sistema de comunicação dos homens ficasse ainda mais elaborado, ao passo em que, segundo Vygotsky (1998, p.216), o desenvolvimento cultural do psiquismo humano resguardasse consigo a sua relação com o emprego de signos.

“E aparentemente, o desenvolvimento cultural de nossos antepassados antropopitecos só foi possível a partir do momento em que, com base no desenvolvimento do trabalho, apareceu a linguagem articulada”.

Em resumo, de acordo com Engels (2004, p. 18)

Os homens em formação chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade criou o órgão: a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que produziram por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após outro.

Entretanto, embora tivesse o homem desenvolvido sua anatomia, as possibilidades de vida em grupo, e para tal a fala, lhe faltava a garantia de continuidade das transformações, condicionadas pela elaboração e utilização de instrumentos necessários e adequados para a ação humana sobre a natureza e para sua sobrevivência, ações estas que seriam invariavelmente realizadas a partir da satisfação de sua necessidade.

Vale destacar que Leontiev (2004) toma a necessidade como condição primeira de toda atividade, mesmo que essa não determine por si mesma uma orientação concreta de uma atividade. Portanto, na atividade animal, a necessidade encontra determinação no objeto e ele se torna o estímulo da atividade.

O domínio dos motivos possíveis está estritamente limitado aos objetos naturais concretos que respondem às necessidades biológicas do animal, e toda a evolução das necessidades está condicionada por uma mudança da organização física dos animais (LEONTIEV, 2004, p. 115).

Porém, é exatamente na definição da condição e ação humana – que em sua dimensão ontológica é humanizadora e emancipadora uma vez condicionada pela satisfação de suas necessidades – que se situa a análise do conteúdo ideológico que perpassa a relação de trabalho nas contradições do capitalismo.

Parafraseando Marx, pode-se dizer que a produção não é mais, ou apenas, a construção de um material que institui uma necessidade, mas, ao mesmo tempo, cria-se uma necessidade para determinado material. Isso, psicologicamente, conforme afirma Leontiev, conduz a dar um sentido biológico adequado a tais objetos – de consumo- de forma que, futuramente, “a sua percepção suscite uma atividade que visa sua posse.

[…] O fato psicológico decisivo consiste no deslocamento dos motivos de uma ação para os fins que precisamente não respondem diretamente às necessidades biológicas naturais” (idem, 116).

As atividades coletivas que faziam uso e posteriormente geraram a necessidade de novos instrumentos garantiram que a alimentação, a habitação e a proteção dos grupos sociais modificassem qualitativamente e também quantitativamente, como por exemplo, objetos utilizados para caçar, pescar. Posteriormente, o homem aprendeu a conservar o fogo e a domesticar os animais (ENGELS, 2004).

Nesta etapa da vida social um único homem não poderia produzir tudo o que necessitava para a sua sobrevivência, ele não dispunha de todos os meios e condições para suprir as suas necessidades e a dos seus descendentes. Neste sentido, Braverman (1987, p.71) afirma que:

Cada indivíduo da espécie humana não pode sozinho “produzir de acordo com o padrão de todas as espécies” e inventar padrões desconhecidos de animal, mas a espécie como um todo acha possível fazer isso, em partes através da divisão do trabalho.

A divisão social do trabalho humano favoreceu o homem como grupo social e proporcionou condições para que, como espécie, este se multiplicasse e se fortalecesse. Contudo, a relação do homem com a natureza, de forma não naturalizada, nem tampouco neutra, propiciou não somente satisfazer as suas necessidades sociais, biológicas e cognitivas, como também criou novas necessidades que se põem para além da satisfação de sua condição humana.

A definição desta necessidade, portanto, deixa de passar pelo seu conteúdo biológico e social, que justifica a intenção de garantia da sua sobrevivência e continuidade da espécie, e passa a configurar o controle e acumulação de posse. A partir do desenvolvimento da base material concreta, o homem modificou a si mesmo e tudo ao seu redor, subjugou a natureza e seus semelhantes.

Várias formas e sistemas foram empregados nesta exploração que em síntese expropriou o homem de sua condição humana. Mas na relação capitalista esta escravização se deu de forma “consentida4 ”.

É intencional e ideológica a relação que se estabelece entre o homem, com o próprio homem, com a natureza e com a produção e acumulação definida pela “necessidade” não biológica do lucro. A alienação do trabalho no capitalismo consiste em um esvaziamento de seu conteúdo material e espiritual que, para Kuenzer (1995, p.33), ocorre em dois planos:

[…] o subjetivo e o objetivo. Considerada do ângulo subjetivo, a alienação significa o não reconhecimento de si nos seus produtos, na sua atividade produtiva e nos demais homens, que lhe surgem como seres estranhos e exteriores a si. Independentemente do que possa sentir o operário, a alienação tem um conteúdo objetivo, evidenciado pela sua pauperização material e espiritual em contraste com a riqueza que produz; o trabalho alienado, além de produzir mercadoria, produz em puro meio de subsistência e não em uma atividade vital; o operário é separado do seu produto e dos meios de produção, que são apropriados pelo capitalista.

Muito embora as relações de trabalho no capitalismo se constituam na maior expressão pela subjugação da condição humana movida pelo trabalho repetitivo, fragmentado, alienado e em especial pela compra da força de trabalho do trabalhador, dificilmente esta relação de compra (por parte de quem detém a posse dos meios de produção) e venda (de quem só dispõe da própria força de trabalho) tem sido analisada historicamente na perspectiva de uma não naturalidade.

Em nome da cultura da troca que respaldou e tem respaldado as formas mais complexas de relação de trabalho, da naturalização da exploração do trabalhador em troca de um salário, está no imaginário do senso comum uma forma naturalizada de explicar as relações do capitalismo. Contudo, nada há de natural na divisão forçada do trabalho, a qual não permite que o trabalhador domine de forma integral os processo de produção dos bens materiais, bem como do seu próprio conhecimento.

O sujeito parcelado desenvolve uma consciência parcelada, isto é, ele não consegue uma visão da totalidade do mundo, do trabalho e do conhecimento. Movimento este que, pode ser percebido nas informações divulgadas pelos meios de comunicação, como é o caso das citações trazidas no início deste trabalho.

É nesta perspectiva que, a favor das relações hegemônicas ou contra-hegemônicas, se define o papel da escola, o qual diretamente está condicionado pelas relações de trabalho, e, portanto, carrega consigo uma intencionalidade no seu papel, ante aos processos produtivos.

O conhecimento parcelado e a escola

Em suas contradições, a escola é o instrumento perfeito para o desenvolvimento, a reprodução e também, o aprofundamento da parcelarização das relações de trabalho. Ainda que sob as relações do capitalismo, o sujeito parcelado necessita do domínio dos conhecimentos necessários ao desenvolvimento e manutenção de sua capacidade produtiva.

A burguesia em ascensão organizou um discurso em que, ao mesmo tempo que se coopta o povo para seus projetos, também se desqualifica o poder hegemônico, até então, da Igreja e da nobreza. O discurso adotado foi o da educação para o povo, muito embora com certa dosagem, uma vez que não havia a pretensão de que o poder recém chegado passasse de mãos burguesas para as camadas mais pobres da população.

Havia a necessidade de um “novo homem” para estes projetos. Não poderia mais ser o homem submisso conforme os padrões religiosos; era preciso uma conformação. Enguita (1987, p.113) destaca que:

A partir de agora, devia aceitar trabalhar para outro e fazê-lo nas condições que este outro lhe impusesse. Se os meios para dobrar os adultos iam ser a fome, o internamento ou a força, a infância (os adultos das gerações seguintes) oferecia a vantagem de poder ser modelada desde o princípio de acordo com as necessidades da nova ordem capitalista e industrial, com as novas relações de produção e os novos processos de trabalho.

Para tal era preciso que se criasse um ambiente ideal para conformar mentes e corpos, discipliná-los para os rigores na nova ordem e para a indústria que se multiplicava; um mecanismo social extremamente poderoso que, em sua gênese, carregava consigo o conteúdo ideológico da cooptação e conformação – a escola!

A exemplo disto tem-se o processo de industrialização na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, o qual visava a produção em larga escala e a superação do modo de produção artesanal5 . Com a industrialização e a produção em larga escala havia a necessidade de um contingente muito grande de trabalhadores que, segundo Braverman (1987, p. 124), já poderiam ser previamente formados num tipo de incubação, a qual poderíamos chamar de “pré-laboral”, uma vez que:

[…] a habituação dos trabalhadores ao modo capitalista de produção deve ser renovada a cada geração, tanto mais que as novas gerações surgidas sob o capitalismo não são formadas dentro da matriz da vida de trabalho, mas jogadas no trabalho vindas de fora, por assim dizer, após um prolongado período de adolescência durante a qual são mantidas na reserva.

Neste sentido podemos inferir que a escola seria um local tanto de formação como de reserva da “nova mão-de-obra” pronta para, assim que surjam novas necessidades econômicas e sociais, possam engrossar o exército de ativos. Este caráter mercadológico designado para a escola adquire, conforme Silva (2004, p.3), o “status de formação administrada quando se demarcam finalidades predeterminadas com vistas a adequá-la a requisitos postos pela sociedade […]”.

Assim, os requisitos sociais ficavam, a cada dia, mais complexos e, na medida em que o ritmo da industrialização e da organização fabril se intensificava, toda esta modificação foi assumida também pela escola. Na indústria a grande mudança viria com as ideias de administração e racionalização científica do trabalho de F. W. Taylor.

Este processo, sustentado na ideia de aumento da produtividade e na diminuição de seus custos, propunha um controle rigoroso e organizado da produção e, consequentemente, do próprio trabalhador, atingindo um alto nível de padronização e repetição das tarefas. Segundo Kuenzer (1995, p.51)

A “humanidade e espiritualidade” do trabalhador presentes no trabalho do artesão, cuja personalidade se refletia no produto do seu trabalho, são incompatíveis com a industrialização crescente. A preocupação que persiste é apenas com a manutenção de determinado equilíbrio psicofísico de modo a não estrangular-se o progresso do processo produtivo a partir do colapso do trabalhador. Para o industrial, a continuidade da eficiência física, muscular e nervosa do trabalhador é fundamental. De vez que a rotatividade da força de trabalho representa um custo adicional que reduz os ganhos do capital.

Se na indústria as ideias de Taylor ganha força, na escola essas tendências são adotadas através do controle do currículo.

As propostas de Bobbit assemelham-se em muito aos princípios adotados pela organização do trabalho fabril inspirados em Frederick W. Taylor. Para aquele teórico, a escola deveria se organizar tal qual se fosse uma indústria. Deveria especificar rigorosamente os resultados que buscava alcançar, bem como precisar os métodos e os mecanismos de mensuração com vistas a saber se os resultados propostos estariam sendo atingidos. De modo sintético, as proposições de Bobbit levam o sistema educacional a estabelecer seus objetivos com base nas demandas de formação previstas pelo mercado de trabalho (SILVA, 2003, p.56).

A lógica industrial sustentada na dualização é reforçada no interior da escola, quando se consolida de forma explícita a cisão entre “aqueles que pensam” e “aqueles que executam”.

Portanto, o que se tem até aqui é o caráter nada neutro destinado à escola pelo viés da formação e reprodução das relações de trabalho definidas pelo capitalismo. Em nenhuma medida, Bobbit, Taylor – a exemplo da organização curricular organizada para a formação da parcelarização das relações de trabalho e condicionamento do comportamento do trabalhador – deixaram de guardar consigo um caráter ideologicamente posto pela burguesia em ascensão.

Muito embora este artigo não se proponha a explicitar as novas formas de acomodação da escola a reestruturação produtiva (considerados inesgotáveis documentos com estes fins), não se pode deixar de destacar que o currículo, a gestão escolar, a formação dos profissionais em educação e os livros didáticos, em grande proporção, se destinam à ideologização.

Uma vez situada a gênese do papel da escola, é possível perceber a sua dimensão hegemônica, por outro lado, também de forma não naturalizada, “neutralizada” ou espontânea, é possível conceber uma educação para contra-hegemonia.

Rumo à contra-hegemonia: a Escola da Luta

Para um fazer educativo que objetive o fim da desigualdade – propiciada pela hegemonia – torna[1]se imperativo a compreensão de que a escola, assim como a sociedade, possui inúmeras contradições, tornando-se assim o espaço ideal para a luta contra o sistema capitalista. Segundo Snyders (2005, p.102):

A escola é um local de luta, a arena em que se defrontam forças contraditórias – e isto porque já faz parte da essência do capitalismo ser contraditório, agir contra ele próprio, criar os seus próprios coveiros. […] A escola não é o feudo da classe dominante; ela é terreno de luta entre a classe dominante e a classe explorada; ela é o terreno em que se defrontam as forças do progresso e as forças conservadoras. O que lá se passa reflete a exploração e a luta contra a exploração.

Além de reconhecer que a escola é um espaço de luta, deve-se reconhecer que lutar contra a exploração só será possível quando a escola se perceber como espaço real. Significa então, que a escola não pode ser organizada para um aluno ideal, uma comunidade ideal, ou qualquer outra circunstância que não faça parte do real, do concreto.

Gramsci via a necessidade de fortalecimento das massas como forma de organizá-las para questionar o modelo capitalista e promover a transformação social. Conforme escrito por ele “É através da crítica da civilização capitalista que se formou ou se está formando a consciência unitária do proletariado, e crítica quer dizer cultura e não evolução espontânea e naturalista” (GRAMSCI, 1916 apud GRAMSCI, 2004, p.86).

Considerando ainda que a educação não é a mesma para todos nesta sociedade, poder-se-ia perguntar: quem define o modelo de formação e a quem cabe proporcioná-la? Segundo Gramsci:

Para o proletariado é necessária uma escola desinteressada. Uma escola em que seja dada à criança a possibilidade de formar-se, de se tornar homem, de adquirir princípios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter. Uma escola humanista, em suma, como a entendiam os antigos e os mais recentes do Renascimento. Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e não obrigue a sua vontade, a sua inteligência e a sua consciência em formação a mover-se num sentido pré-estabelecido. Uma escola de liberdade e de livre iniciativa e não uma escola de escravidão e mecânica. Também os filhos dos proletários devem usufruir de todas as possibilidades, todos os campos livres para poder realizar a sua própria personalidade no melhor sentido e, portanto, no modo mais produtivo para eles e para a colectividade. A escola profissional não deve tornar-se uma incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para uma profissão, sem ideias gerais, sem cultura geral, sem alma, só com um golpe de vista infalível e a mão firme. Mesmo através da cultura profissional se pode fazer transformar a criança em homem, contanto que seja cultura educativa e não apenas informativa, não apenas prática manual (GRAMSCI, 2004, p. 101).

A escola desinteressada6 em nenhuma media é neutra, pelo contrário, é uma alternativa clara de formar os alunos para além dos interesses do mercado e das classes dominantes, dando base aos sujeitos para entenderem a realidade em todos seus determinantes históricos, políticos, ideológicos, culturais, econômicos.

Uma vez conscientes das relações de contradição inerentes ao próprio capitalismo, os filhos dos trabalhadores poderão optar e lutar pela possível transformação social, colocando-se como sujeitos históricos deste processo. Saviani (1994) analisa esta mesma questão da função da escola como contradição advinda da generalização da escola básica pela burguesia.

Na diferenciação de modelos de escola para tipos de sujeitos, ele descreve em outras palavras o que Gramsci chama de escola “incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para uma profissão”: “as escolas para as massas, que ou se limitam à escolaridade básica ou, na medida em que têm prosseguimento, ficam restritas a determinadas habilitações profissionais” (SAVIANI, 1994, p.159), enquanto que as escolas de elite se destinam à formação intelectual.

Sabe-se que durante a história da humanidade a escola foi diferenciada sim, até por questões econômicas. Cabe discutir se é esse caminho que se deseja ser seguido contemporaneamente. Fazer parte do real exige uma posição, a bandeira da neutralidade já não pode mais ser hasteada. “A vida atual transforma a escola neutra em escola de hipocrisia, de escravidão, que está longe da vida e é estranha aos alunos” (Kroupskaia7 , 1977, p.68).

Sendo os homens, em sua atividade concreta, o ponto de partida para a construção do conhecimento, a ciência real, a formação de conceitos, a aprendizagem, o desenvolvimento da personalidade começam na vida real, na atividade prática. Portanto, a verdadeira atividade – a práxis – é teórico-prática e, neste sentido, é relacional, é critica, é educativa, é transformadora, pois é teoria sem ser mera contemplação – uma vez que é a teoria que guia a ação – e é prática sem ser mera aplicação da teoria – uma vez que a prática é própria ação guiada e mediada pela teoria; teoria entendida aqui como uma aquisição histórica construída e produzida na interação que se estabelece entre os homens e o mundo (FRANCO, 1989, p.31).

Portanto, tornar os conhecimentos escolares e a própria escola significantes, não quer dizer restringir a ação dos mesmos ao nível do imediato. A escola tem uma história, mediatizada pelos condicionantes econômicos, culturais e sociais. Concebê-la pragmaticamente, na perspectiva da formação ou “incubação’ do futuro trabalhador, implica em perder sua força de luta e ruptura com o status quo.

A escola, segundo Gramsci, deve destinar-se a formar os futuros dirigentes que pensem e produzam o conhecimento a partir das relações de trabalho, mas concebido este em sua dimensão ontológica, como condição de vida, de humanização, de satisfação das necessidades biológicas e sociais- trabalho em sua dimensão ontocriativa.

Considerações finais

A gênese da escola está imbricadamente posta no seu papel ante as relações de trabalho constituídas no e para o capitalismo. O que se pode inferir sobre isto é que da mesma forma em que a ação humana não é e nem nunca será espontânea e naturalizada, as relações de trabalho, no capitalismo ou para além dele, são marcadas pela intencionalidade humana.

A despeito das produções midiáticas que têm sido insistentes na apologia a uma possível neutralidade, o desenvolvimento da consciência humana, isto é, percepção, pensamento, linguagem e sentimentos, está relacionado ao desenvolvimento de uma atividade prática que já carrega consigo uma não neutralidade.

O trabalho está atrelado às condições históricas de desenvolvimento da humanidade. A escola capitalista, em suas contradições, apresenta-se como espaço privilegiado para o desvelamento das condições sociais reais do sujeito.

A relação homem, educação e trabalho é, portanto, inerente à forma como a escola se organiza e tem se organizado historicamente, seja para reproduzir – acomodar ou para transformar .

O caráter ideológico já está explicito na apologia à não ideologização. Assim sendo, o que se conclui é que na medida em que as relações de trabalho postas no capitalismo – em sua essência expropriadoras da condição humana – forem naturalizadas e, de forma simplista, explicadas pela relação de troca entre quem detém os meios de produção e a força de trabalho, qualquer movimento no sentido da desmistificação do papel da escola será acusado de ideologização.

A ideologia, contudo, já está posta na própria crítica à dimensão ideológica da escola. A neutralidade é impossível. O não posicionamento já traz consigo uma opção política, seja para conservar ou transformar.

Os nossos filhos estão imersos no conteúdo ideológico dos livros didáticos, da formação dos seus professores e do currículo da escola, simplesmente pelo fato de que a neutralidade não existe.

Seguramente a escola não é um espaço redentor, nem tampouco está hipostasiada. Ela sofre as determinações históricas, econômicas e sociais e por meio destas o seu papel vem sendo definido.

Assim, uma vez compreendida a dimensão da intencionalidade da ação humana, do trabalho como princípio educativo e das relações no capitalismo, fica clara a necessidade de conceber, em sua melhor expressão, a escola desinteressada de Gramsci, que, contraditoriamente, já carrega consigo o interesse da classe trabalhadora em perceber nela uma possibilidade de emancipação e formação humana.

Assista aos Vídeos Abaixo:

   

   

REFERÊNCIAS

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ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. in: Dialética do trabalho.

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SNYDERS, Georges. Escola, Classe e Luta de Classes. (tradução Leila Prado) São Paulo: Centauro, 2005.

VIGOTSKI, L. S. O Desenvolvimento Psicológico na Infância. (tradução Claudia Berliner) São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Título : Organização do Trabalho Pedagógico

Fonte: Organização do trabalho pedagógico / Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Coordenação de Gestão Escolar. – Curitiba : SEED – Pr., 2010.


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