A criança e seu processo de alfabetização
As pesquisas sobre o processo de alfabetização vêm mostrando que, para poder se apropriar do nosso sistema de representação da escrita, a criança precisa construir respostas para duas questões:
1 . O que a escrita representa?
2 . Qual a estrutura do modo de representação da escrita? A escola considera evidente que a escrita é “um sistema de signos que expressam sons individuais da fala” (Gelb, 1976) e supõe que também para a criança isso seja dado a priori.
Mas não é. No início do processo toda criança supõe que a escrita é uma outra forma de desenhar as coisas. Vamos dar alguns exemplos que o professor pode reconhecer, na sua prática diária, mas não tinha até então como interpretar. Pediu-se a uma criança, que aprendeu a reproduzir a forma escrita do nome de sua mãe (Dalva), que escrevesse a palavra “mamãe”, cuja forma ela não conhecia. Ela escreveu, com convicção, “Dalva”.
E, questionada em relação à inadequação da sua escrita, ficou perplexa com a incapacidade adulta de compreender uma coisa tão evidente, isto é, que Dalva e mamãe são a mesma pessoa e, portanto, a mesma escrita.
O que a criança não compreende é que a escrita representa a fala, o som das palavras, e não o objeto a que o nome se refere. De uma pesquisa realizada em Recife reproduzimos as seguintes informações da entrevista ocorrida no início do ano letivo com uma criança cursando pela primeira vez a 1ª série:
Diante do par de palavras BOI/ARANHA:
Experimentador: Nestes cartões estão escritas duas palavras: boi e aranha. Onde você acha que está escrito boi e onde está escrito aranha? Criança: Aqui está escrito boi (apontando para a palavra ARANHA) e aqui está escrito aranha (apontando para a palavra BOI). Experimentador: Por que você acha que aqui (BOI) está escrito aranha e aqui (ARANHA) está escrito boi? Criança: Porque essa daqui tá pequena e esse daqui tá grande. Tia me ensinou que boi começa com A. Vê-se, portanto, aqui, o divórcio entre o conhecimento da letra e as hipóteses dessa criança a respeito da escrita. Para ela, a escrita devia conformar-se à sua concepção ainda realística da palavra, ou seja, coisas grandes têm nomes grandes e coisas pequenas têm nomes pequenos.
Mas o fato é que, em vez de confirmar, a realidade, dentro e fora da escola, desmente seguidamente a teoria que a criança construiu sobre o que a escrita representa. Desmente e problematiza, obrigando a criança a construir uma nova teoria, novas hipóteses. Ao começar a se dar conta das características formais da escrita, a criança constrói então duas hipóteses que vão acompanhá-la por algum tempo durante o processo de alfabetização:
- a) de que é preciso um número mínimo de letras – entre 2 e 4 – para que esteja escrito alguma coisa4 e
- b) de que é preciso um mínimo de variedade de caracteres para que uma série de letras “sirva para ler”. De início, a criança não faz uma diferenciação clara entre o sistema de representação do desenho (pictográfico) e o da escrita (alfabético), como se pode observar na escrita de Reginaldo, 6 anos (22/8/84).
O contato, no universo urbano, com os dois sistemas – da escrita e do desenho – permite estabelecer progressivamente essa diferenciação. Mas, mesmo quando a criança já tem claro que “desenha-se com figuras” e “escreve-se com letras”, a natureza do sistema alfabético ainda permanece um mistério a ser desvendado. Ainda antes de supor a escrita como representação da fala, a criança faz várias tentativas de construir um sistema que se assemelhe formalmente à escrita adulta, buscando registrar as diferenças entre as palavras por meio de diferenças na quantidade, posição e variação dos caracteres empregados para escrevê-las. Veja a escrita da Edinilda (22/8/84).
Enquanto não encontra respostas satisfatórias para as duas perguntas fundamentais: “o que a escrita representa?” e “qual a estrutura do modo de representação da escrita?”, a criança continua pensando e tentando adequar suas hipóteses às informações que recebe do mundo. A descoberta de que a escrita representa a fala leva a criança a formular uma hipótese ao mesmo tempo falsa e necessária: a hipótese silábica.
REFERÊNCIAS:
Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.
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