As teorias da mente são constituídas por um conjunto de teses que as tornam únicas. O objetivo deste capítulo é apresentar algumas dessas teses responsáveis pela caracterização das teorias da mente para, em seguida, analisá‑las pela óptica behaviorista radical. Esse exercício é bastante útil porque possibilita o contato direto entre o behaviorismo radical e os problemas relevantes da filosofia da mente, colocando‑o, assim, no centro dessa vertente filosófica.
Diversos autores da filosofia da mente situam Skinner como partidário do behaviorismo filosófico (e.g., Armstrong, 1968; Churchland, 1988/2004; Kim, 1996; Searle, 2004). O objetivo desta seção é mostrar que as principais teses constituintes do behaviorismo filosófico citadas na subseção 1.1.2 encontram alternativas incompatíveis no behaviorismo radical. Para tanto, serão trazidas à tona as diferenças entre a teoria do significado verificacionista do behaviorismo lógico e a forma como o behaviorismo radical lida com o problema do significado; será analisada a incompatibilidade entre a definição de comportamento sustentada pelo behaviorismo radical e pelo behaviorismo lógico; e, por fim, será avaliado o papel da linguagem disposicional na teoria behaviorista radical do comportamento.
Em síntese, o behaviorismo lógico sustenta que o significado de uma sentença é dado pelas suas condições de verificação. Essas condições, por sua vez, seriam os comportamentos físicos observáveis dos sujeitos. Dessa forma, um termo psicológico só teria sentido se fosse passível de tradução para termos comportamentais publicamente observáveis ou para termos disposicionais que indicam a tendência ou a propensão de que certos comportamentos publicamente observáveis possam ocorrer se certas condições forem satisfeitas (subseção 1.1.2). A conclusão imediata que se pode extrair dessas condições é que qualquer linguagem significativa deve ser puramente objetiva.
Não haveria espaço para termos relacionados a eventos que não fossem observáveis por mais de uma pessoa. O behaviorismo radical, contudo, de maneira alguma excluiu a análise dos eventos privados de sua proposta de ciência (Skinner, 1945/1961g, 1953/1965, 1957, 1963a, 1967, 1971, 1972b, 1974, 1987a). Talvez essa seja uma das principais características do behaviorismo radical, cuja radicalidade estaria em não deixar nenhum fenômeno comportamental, mesmo que observável apenas ao sujeito que se comporta, fora do âmbito de análise.
É justamente por isso que Skinner (1945/1961g, 1953/1965, 1963a, 1967, 1974, 1987a) contrapõe o behaviorismo radical ao behaviorismo metodológico. Nas palavras do autor (1987a, p.490): “Behavioristas metodológicos, tal como os positivistas lógicos, argumentam que a ciência deve se limitar aos eventos que podem ser observados por duas ou mais pessoas; verdade deve ser verdade por consenso”. Em outro texto, Skinner (1967, p.325) afirma que o “fisicalismo do positivismo lógico nunca foi bom behaviorismo” e conclui dizendo que em uma “ciência do comportamento adequada nada que determine a conduta deve ser deixado de lado, não importando o quão difícil possa ser o acesso”.
O “fisicalismo” ao qual Skinner se refere não é especificamente a tese monista sobre a substância da qual o mundo é feito (embora possa incluí‑la), mas sim a ideia positivista lógica de que as condições de verificação dos termos psicológicos devem ser comportamentos físicos e observáveis publicamente (Skinner, 1979). Diferentemente do behaviorismo lógico, o behaviorismo radical sustenta que os significados das sentenças são as contingências que estabelecem suas condições de controle (Skinner, 1945/1961g, 1957).
Especificamente, “o significado não é uma propriedade do comportamento enquanto tal, mas sim das condições sob as quais o comportamento ocorre” (Skinner, 1957, p.13‑4). Consequências importantes decorrem da teoria behaviorista radical do significado. Em primeiro lugar, o significado de um termo psicológico não estaria nas condições de verificação – isto é, nos comportamentos físicos publicamente observáveis –, mas sim nas contingências que controlam a classe operante verbal da qual ele faz parte. Especificamente sobre os termos psicológicos, Skinner (1945/1961g, p.274‑5) afirma:
O que queremos saber no caso de muitos conceitos psicológicos tradicionais são, primeiramente, as condições de estimulação específicas sob as quais eles são emitidos (o que corresponde a “achar os referentes”) e, em segundo lugar (e essa é uma questão sistemática muito mais importante), por que cada resposta é controlada por suas condições correspondentes.
Em segundo lugar – sendo essa a consequência mais importante decorrente da teoria behaviorista radical do significado –, não importa se as contingências relacionadas aos termos psicológicos envolvam eventos privados, pois o que caracteriza o significado não seria o acesso, mas sim as próprias contingências. Skinner (1963a, p.953) defende sua posição dizendo que a “ciência frequentemente fala sobre coisas que não podem ser vistas ou medidas”. Como resultado, o behaviorismo radical pode “considerar os eventos privados (talvez por inferência, mas, não obstante, significativamente)” (Skinner, 1945/1961g, p.285, itálico adicionado).
Essas diferenças entre a teoria do significado do behaviorismo lógico e a teoria do significado do behaviorismo radical são importantes porque possibilitaram ao segundo conservar os eventos privados enquanto tais, em vez de partir para a busca de traduções em linguagem puramente objetiva cujos referentes seriam apenas eventos observáveis. Skinner não precisaria, assim, eliminar ou ignorar os eventos privados como objeto legítimo de estudo científico. E mais, as condições de controle que dão sentido aos termos referentes aos eventos privados são todas públicas.
Afinal, o sujeito só conhece o seu próprio mundo privado graças às contingências estabelecidas pela comunidade verbal (seções 2.6 e 3.4). Esse ponto é importante porque mostra que, embora não se tenha acesso aos eventos privados, as contingências que dão significado aos relatos desses eventos são, em princípio, acessíveis publicamente, o que mantém o behaviorismo radical como uma filosofia da ciência empírica (seção 2.2). Além das divergências entre a teoria behaviorista radical e a teoria behaviorista lógica do significado, uma diferença importante entre esses tipos de behaviorismo está na própria definição de comportamento.
Para o behaviorismo lógico, o comportamento seria nada mais que respostas físicas e públicas dos organismos. Retomemos a definição de Kim (1996, p.28) já citada na subseção 1.1.2: “qualquer coisa que as pessoas ou os organismos, ou até mesmo os sistemas mecânicos, fazem e que são observáveis publicamente”. Essa definição prioriza basicamente a topografia e o caráter público do comportamento, isto é, as suas propriedades físicas. A definição behaviorista radical, por sua vez, é essencialmente relacional. O comportamento é definido como a relação entre o ambiente e as ações de um organismo (seção 2.1).
Nesse contexto, o ambiente é qualquer evento que afete o organismo, podendo ser tanto estímulos eliciadores ou discriminativos quanto eventos consequentes, e a ação é caracterizada pela sua relação funcional com o ambiente e não pela sua propriedade física. Por não ser condicionada às propriedades físicas que constituem os estímulos e as respostas e às suas eventuais características, tais como a observabilidade, a definição relacional de comportamento proposta pelo behaviorismo radical não guarda nenhuma semelhança com a definição behaviorista lógica. Antes de partir para a próxima seção há ainda uma questão que merece ser discutida: o papel da linguagem disposicional no behaviorismo radical.
A análise disposicional é a principal ferramenta de Ryle (1949) em sua “desconstrução” da mente cartesiana. Sobre Ryle, diz Skinner (1988, p.199‑200): “Concordo com Ryle em que nós estamos usualmente falando sobre comportamento quando falamos sobre conhecimento, crenças, pensamento, desejo e intenção (eu não seria muito behaviorista se não concordasse!)”. Todavia, para Ryle (1949), esses termos são analisados como disposições. Sendo assim, a questão que se coloca é a seguinte: qual a relação entre disposição e comportamento?
Dado que para o behaviorismo radical os fenômenos costumeiramente classificados como “mentais” não passam de relações comportamentais (seção 3.1), o que significa dizer que a mente é comportamento; e dado que, para Ryle (1949), o vocabulário mental em grande parte se refere às habilidades e inclinações para fazer certas coisas, isto é, às disposições para se comportar de uma dada forma (subseção 1.1.2), então é pertinente questionar o lugar que as disposições ocupariam no arcabouço conceitual do behaviorismo radical. Primeiramente, poderíamos dizer que disposição é sinônimo de comportamento.
Afinal, se para Skinner a mente é comportamento, e para Ryle a mente é disposição, então é uma hipótese legítima que disposição e comportamento sejam termos correlatos. Outra hipótese seria sustentar que o vocabulário disposicional serviria apenas para descrever o comportamento. Quando do âmbito de análise, do ponto de vista do cientista, o fluxo comportamental é pressuposto e inobservável (seção 2.1). É possível observar apenas respostas únicas evanescentes – apenas “pedaços” do fluxo.
O cientista, então, “quebra” o fluxo para analisar o comportamento, desenvolvendo, no processo, construtos teórico‑ analíticos – por exemplo, os conceitos de respondente, operante, classes, etc. – que possibilitam à análise avançar para a construção de uma teoria do comportamento. O cientista também não observa as classes comportamentais, e essas não são, em si, comportamentos: as classes são ferramentas que auxiliam na análise. Talvez o vocabulário disposicional possa entrar nesse âmbito, ou seja, também como um construto teórico‑analítico que auxilia na descrição do comportamento.
Se assim for, disposição não seria sinônimo de comportamento, mas no máximo uma maneira de falar sobre o comportamento. É possível encontrar dados que contribuem para essa segunda hipótese na própria obra de Skinner: “Quando o homem na rua diz que alguém está com medo, ou irritado, ou amando, geralmente ele está falando sobre predisposições para agir de certas maneiras” (Skinner, 1953/1965, p.162); e “Uma disposição para se comportar não é uma variável interveniente; ela é a probabilidade de se comportar” (Skinner, 1988, p.360).
Assim, termos disposicionais servem como sinalizadores da probabilidade de ocorrência de res‑ postas pertencentes a uma dada classe. Quando dizemos que o sujeito S está “bravo” sinalizamos que a probabilidade de que ele grite com ou machuque alguém é alta. “Bravo” seria, então, um termo disposicional, assim como “inteligente” (exemplo de Ryle visto na subseção 1.1.2). É importante ressaltar, porém, que os termos disposicionais não servem como explicação do comportamento. Não podemos dizer que o sujeito S bateu em alguém porque ele estava “bravo”. Uma propriedade disposicional, de acordo com Ryle (1949), indica apenas a propensão para agir de uma dada maneira se certas condições forem satisfeitas.
O termo “bravo” refere ‑se à disposição do sujeito S de gritar ou machucar alguém (isto é, à alta probabilidade de que ele faça certas coisas em certas ocasiões), mas o ato de violência só é explicado quando analisado funcional‑ mente em relação às suas condições antecedentes e consequentes. Talvez seja por isso que o vocabulário disposicional não apareça com frequência na teoria behaviorista radical do comportamento – por ser constituído por termos que apenas denotam probabilidades que, por si, não auxiliam na explicação do comportamento.
Em nenhum momento da interpretação behaviorista radical da mente (seção 3.1), por exemplo, foi preciso utilizar o vocabulário disposicional. Em adição, há o risco de os termos disposicionais serem interpretados como explicações internas do comportamento: o termo “braveza” pode ser usado para indicar uma condição mental ou fisiológica inerente ao sujeito S e que é, por sua vez, responsável pelos seus atos de violência. Skinner (1969b, p.24) resume claramente sua posição sobre o vocabulário disposicional na seguinte passagem:
Prática similar pode sobreviver por muito tempo na ciência física sem ser ridicularizada. Ainda é provável que digamos que um metal pode ser forjado porque é maleável ou porque possui a propriedade de ser maleável. Não obstante, Newton estava ciente do perigo: “Dizer que todas as espécies de coisas são dotadas de qualidades ocultas específicas pelas quais elas agem e produzem efeitos manifestos é o mesmo que dizer nada”. O erro é tomar a qualidade oculta seriamente. Não há prejuízo em dizer que um objeto flutua ou afunda por causa de sua gravidade específica, desde que reconheçamos que o termo simplesmente se refere a certas relações. Não há prejuízo em dizer que um estudante adquire notas altas por causa da sua inteligência ou que toca bem o piano por causa de sua habilidade musical, ou que um político aceita suborno por causa de sua cobiça ou que concorre ao gabinete por causa de sua ambição, desde que reconheçamos que estamos “explicando” uma instância do comportamento simplesmente pelo apontamento de outras instâncias, que presumivelmente remontam às mesmas, embora não identificadas, variáveis.
Em síntese, o vocabulário disposicional não explica o comportamento, pois não indica as variáveis das quais ele é função: dizer que o sujeito S agiu da forma que agiu porque estava “bravo” é o mesmo que dizer nada. Na melhor das hipóteses, os termos disposicionais servem apenas como sinalizadores de probabilidades de ocorrência de respostas. Além disso, há o perigo apontado por Newton e ressaltado por Skinner: os termos disposicionais podem sugerir qualidades ocultas responsáveis pelo comportamento, o que é um problema tanto para a física quanto para a ciência do comportamento. É possível sugerir, portanto, que o behaviorismo radical não precisa do vocabulário disposicional e que até pode ser considerado mais “seguro” sem ele, já que assim seus potenciais problemas são evitados.
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REFERÊNCIAS:
A natureza comportamental da mente: behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
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