A Hipótese Silábica

A hipótese silábica é um salto qualitativo, uma daquelas “grandes reestruturações globais” de que nos fala Piaget. Um salto qualitativo tornado possível pelo acirramento das contradições entre as hipóteses anteriores da criança e as informações que a realidade lhe oferece. O que caracteriza a hipótese silábica é a crença de que cada letra representa uma sílaba – a menor unidade de emissão sonora. Veja, a seguir, três amostras de escrita silábica.

A Hipótese Silábica

A hipótese com a qual essa menina trabalha é a de que cada letra representa uma emissão sonora, isto é, uma sílaba oral. É o tipo de escrita que Emília Ferreiro chama silábica estrita. Cleonilda demonstra um razoável conhecimento do valor sonoro convencional das letras que, no entanto, ela adapta às necessidades de sua hipótese conceitual. A vogal “o”, por exemplo, vale “to” em gato, “bor” e “bo” em borboleta, “lo” em cavalo e novamente “bo” em boi.

A Hipótese Silábica

A escrita desse menino também é silábica. Mas, no caso dele, esta hipótese entra em conflito com outra: a hipótese da quantidade mínima de caracteres para que um conjunto de letras possa ser considerado uma palavra. (No início do processo de alfabetização, as crianças supõem que uma única letra “não serve para ler”, o que varia de uma para outra é o número de letras que é tido como mínimo, em geral entre 2 e 4.)

O Lourivaldo exige três letras no mínimo, o que cria um problema na escrita dos monossílabos e dissílabos. A solução que ele encontrou foi agregar letras sem valor sonoro às palavras com menos de três sílabas, o que acabou criando, em gato e boi, uma discrepância entre a intenção da escrita e a interpretação da leitura: na escrita a letra muda era a terceira, mas na hora de ler preferiu considerar como muda a letra do meio. Há também preocupação com o valor sonoro convencional.

A Hipótese Silábica

Essa é uma escrita silábica bem mais difícil de reconhecer que as anteriores. Um caso em que o conhecimento que a professora construiu observando a criança é que possibilita a interpretação. Daniel estava vivendo um momento de conflito cognitivo. Vinha testando sua hipótese silábica em todas as palavras a que tinha acesso, isto é, todas as que alguém lia para ele, e ficava visivelmente aflito com as letras que sobravam. A forma que encontrou de acomodar a situação foi agregar letras mudas no final, mas esse arranjo não era, de modo algum, satisfatório.

Seu desconforto durante a atividade era visível: recusou-se a ler “borboleta” e “boi” e foi preciso insistir muito para que lesse “cavalo” e “gato”. Dissemos que a hipótese silábica é falsa e necessária. Vamos analisar as duas partes dessa afirmação. Em primeiro lugar, a questão da falsidade. Supor que cada letra representa uma sílaba é falso com relação à concepção adulta da escrita, à convenção social, que é alfabética.

Mas não resta dúvida de que é muito mais verdadeira que as hipóteses anteriores. Ela dá uma resposta verdadeira à primeira questão: “O que a escrita representa?” O salto qualitativo é a descoberta de que a escrita representa os sons da fala. Junto com a compreensão da natureza do objeto representado emerge a necessidade de estabelecer um critério de correspondência. Não é mais possível à criança atribuir globalmente a palavra falada à sua escrita.

Impõe-se a necessidade de partir tanto a fala quanto a escrita e fazer corresponder as duas séries de fragmentos. Nesse esforço, a criança comete um erro: supõe que a menor unidade da língua é a sílaba.

Um “erro” aliás muito lógico se pensarmos na impossibilidade de emitir o fonema isolado. A hipótese silábica é, então, parcialmente falsa, mas necessária. Necessária como são necessários “erros construtivos” no caminho em direção ao conhecimento objetivo. As pesquisas de Emília Ferreiro, em 1982, com 900 crianças que cursavam pela primeira vez a 1ª série da escola pública em várias cidades do México, mostram que mais ou menos 85% das crianças estudadas que aprenderam a ler utilizavam a hipótese silábica em pelo menos uma das quatro entrevistas realizadas durante o ano.

Isto é, a maioria das crianças precisou desse “erro construtivo” para chegar ao sistema alfabético. Como o intervalo entre as entrevistas era de 60 a 80 dias, fica difícil saber se os 15% restantes passaram ou não por esse erro construtivo. Mas uma coisa é certa: é impossível chegar à compreensão do sistema alfabético da escrita sem descobrir, em algum momento, que o que a escrita representa é a fala. Mas, no processo de alfabetização, a hipótese silábica é, ao mesmo tempo, um grande avanço conceitual e uma enorme fonte de conflito cognitivo.

No entanto, a hipótese silábica cria suas próprias condições de contradição: contradição entre o controle silábico e a quantidade mínima de letras que uma escrita deve possuir para ser interpretável (por exemplo, o monossílabo deveria se escrever com uma única letra, mas quando se coloca uma letra só, o escrito “não pode ser lido”, ou seja, não é interpretável); além disso, há contradição entre a interpretação silábica e as escritas produzidas pelos adultos (que têm sempre mais letras do que as que a hipótese silábica permite antecipar). No mesmo período – embora não necessariamente ao mesmo tempo – as letras podem começar a adquirir valores sonoros (silábicos) relativamente estáveis, o que leva a uma correspondência com o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por letras semelhantes. E isto também gera suas formas particulares de conflito. (Emília Ferreiro)

Imaginem como fica conflitante para a criança defrontar-se com o fato de que, por exemplo, sua escrita para “pato” (AO) ficou igual à que ela produziu para “gato”. Vocês devem estar se perguntando por que isso não foi percebido até então; por que não se tornou observável antes para nós, professores. A resposta é que não podíamos “ver” a escrita silábica por razões semelhantes à de que a humanidade não pôde rever a ideia de uma Terra plana enquanto não admitiu que esta é que girava em torno do Sol e não o contrário.

Foi necessária uma concepção dialética do processo de aprendizagem, uma concepção que permitisse ver a ação do aprendiz construindo o seu conhecimento, onde o professor aparece não mais como o que controla a aprendizagem do aluno e sim como um mediador entre aquele que aprende e o conteúdo a ser aprendido. Só a partir desse novo referencial é possível imaginar que a criança aprenda algo que não foi ensinado pelo professor.

REFERÊNCIAS:

Alfabetização : livro do professor / Ana Rosa Abreu … [et al.]. Brasília : FUNDESCOLA/SEF-MEC, 2000.


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